Regar a memória

Não há que temer: somos seres trágicos e a tragédia eleva-nos ao pisar-nos: é assim que nos tornamos vinho.

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— É preciso regar a memória, meus futuros cadáveres — disse a Alexandra aos jovens que se reuniam na sua casa —, como quem cuida de plantas, porque muitas pessoas da minha idade já não se lembram como era o tempo da varíola, da poliomielite, da difteria, do sarampo e da rubéola, doenças que entretanto foram todas erradicadas ou eliminadas, não se lembram da fome e da guerra e do analfabetismo e das inúmeras desigualdades absurdas a que eram sujeitas, no entanto, por outro lado, recordam-se dos dedos das avós a remexerem-lhes o couro cabeludo à cata de piolhos como uma bela memória. Pior: elogiam a putativa honestidade de um ditador, por contraponto às notícias de corrupção, e a antiga simplicidade da vida, por contraponto à celeridade desta, atiram ao ar aquela ladainha, reiterada vezes sem conta ao longo da História, a queixa de que a geração actual não presta, dizendo que os jovens não se concentram, não se interessam senão por frivolidades, não têm cultura, não lêem, não têm palavra, não querem trabalhar, são incapazes de pensar.

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