Acha que só os mamíferos têm leite? Conheça esta mãe sem pernas

Novo estudo publicado na revista Science mostra que há uma espécie de anfíbio (uma “cobra cega”) que liberta uma substância com açúcares e lípidos que servirá de alimento às suas crias.

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A mãe Siphonops annulatus com a sua prole Carlos Jared/ The Washington Post
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A lactação é considerada um comportamento dos mamíferos, mas vários animais que não são mamíferos - incluindo aranhas, baratas e algumas aves - alimentam as suas crias com alguma forma de leite.

Um novo estudo publicado na revista Science, esta quinta-feira, mostra que outra espécie improvável fornece leite aos seus filhotes depois de eclodirem: o Siphonops annulatus, um anfíbio que põe ovos, semelhante a uma minhoca, encontrado no subsolo das florestas do Brasil.

Esta descoberta vem juntar-se a um conjunto crescente de investigação que desafia a nossa compreensão da evolução da forma como os animais cuidam das suas crias.

"É uma trajectória evolutiva completamente inesperada", disse Marvalee Wake, professora de biologia na Universidade da Califórnia em Berkeley, que não esteve envolvida no novo estudo.

Crias em cima das mães

Estes anfíbios semelhantes a vermes são cecílias, um grupo de criaturas cegas e sem membros que normalmente vivem debaixo da terra, o que faz com que sejam pouco compreendidos, disse Carlos Jared, o investigador principal do estudo. Muito do que se sabe sobre estes vermes tem sido através da investigação do seu ambiente. Na sua maioria, perderam a capacidade de ver porque vivem debaixo da terra, no escuro, enquanto outros sentidos foram reforçados pela selecção natural.

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Carlos Jared/ The Washington Post

"O acesso a estes animais é muito difícil", disse Jared. Os investigadores "precisam de escavar, de procurar os animais no solo das florestas. É difícil de estudar".

O Laboratório de Biologia Estrutural de Jared, no Instituto Butantan, em São Paulo, Brasil, estuda os anfíbios cecílias (ou as chamadas "cobras cegas") há anos, concentrando-se em particular na Siphonops annulatus, frequentemente encontrada nas plantações de cacau da Mata Atlântica no Brasil.

Ao estudar os animais nos meses após o nascimento, Pedro Luiz Mailho-Fontana, investigador do laboratório de Jared e principal autor do novo estudo, observou que, nos primeiros meses após o nascimento, as crias estavam sempre em cima das mães. Durante este período, a pele da mãe mudou de cor, passando do típico cinzento-azulado escuro para uma cor opaca e esbranquiçada.

As recém-nascidas cobras pareciam aglomerar-se à volta de uma abertura na pele da mãe, onde uma substância pegajosa era expelida várias vezes por dia. As crias alimentavam-se com entusiasmo e depois pareciam saciadas, deixando que os irmãos se alimentassem à vez.

Os investigadores descobriram que a substância continha açúcares e lípidos - muito semelhante ao leite dos mamíferos. E parecia que os sons provenientes das crias induziam a mãe a libertar o leite - quase como os bebés que choram quando têm fome.

São feias? Veja se não parece que estão a sorrir

"As rãs-arborícolas também são conhecidas pelos seus chamamentos. Algumas salamandras também podem produzir sons", esclarece Mailho-Fontana.

Mas não se sabia até agora que as cecílias também emitiam sons - e a correlação com a libertação de leite era especialmente interessante. "Talvez as crias estejam a pedir comida à mãe. E isto é completamente novo para nós vermos nas cecílias: ... comunicação acústica."

Os investigadores dizem que são necessários mais estudos - mas a descoberta de que um anfíbio comunica com as suas crias desta forma pode ser ainda mais surpreendente do que o comportamento alimentar.

A parentalidade em geral não é algo que muitos anfíbios façam - mas há várias espécies que são notáveis excepções.

"Nas rãs, nalgumas espécies, os machos levam comida aos girinos", observou Wake. Em algumas espécies de salamandras, a mãe fica com a ninhada de ovos e as suas secreções cutâneas ajudam a protegê-los das bactérias.

Wake reconhece que os comportamentos observados pelos investigadores no Brasil serão um exemplo "extremo" - mas também defende que há valor em estudar uma espécie estranha - porque olhar como um anfíbio passou a alimentar seus filhotes com leite pode dizer-nos alguns dados importantes sobre o alcance da evolução.

E quanto às pessoas que acham que as cecílias são feias ou nojentas? "Eu chamo a atenção para o facto de que, se olharmos para uma cecília de frente, ela tem uma boca grande e parece que está a sorrir", recomenda Wake.

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