Mãos e cabelos
Vencendo o ruído do mundo, aquele era o momento do silêncio, da paz, do regresso à certeza.
Muitas vezes, durante a tarde, depois de um dia de trabalho, a São pousava a novela que estivesse a ler — sempre do tal autor francês —, olhava pela janela, esfregava as mãos uma na outra. Tinha vontade de acariciar os cabelos da filha, saudade de uma relação que nunca existiu, de uma intimidade perdida: há uma recompensa recíproca nesse gesto, a criança sente que quando a mãe passa a mão na sua cabeça é tudo tão verdade, mas também a sensação de esse gesto, para a mãe, ser uma ablução, em que as mãos se purificam do trabalho quotidiano, da inclemência da sociedade, daquilo que as mãos não deveriam ter feito, daquilo que as mãos deveriam ter feito, daquilo que as mãos foram obrigadas a fazer, como se os cabelos de uma criança pudessem devolver, às mãos adultas, a inocência. Ao acariciar, desfaz-se o que foi feito, como quem lava a vida da passagem do tempo — ou com a própria passagem do tempo, análoga à água —, limpando, pela manhã, os restos dos sonhos que ainda ficaram presos aos cabelos, permitindo sonhar de novo, sonhar melhor. Assim pensava Walter Benjamin, que dizia ser esse gesto um dos trabalhos da maternidade. No entanto, também porque a Ana já era adulta e autónoma, a São não era capaz de tornar consciente esse desejo que fazia parte dum passado perdido, em que mãe e filha se podiam ter encontrado num tempo de indolência e quietude, em que o mundo se interrompe e há apenas uma criança de olhos fechados e uma mãe que lhe acaricia os cabelos: vencendo o ruído do mundo, aquele era o momento do silêncio, da paz, do regresso à certeza, de parentesiar o turbilhão e o sorvedouro da vida. A São esfregava as mãos uma na outra, devagar, com uma lentidão própria, porque o seu corpo sabia muito bem o que queria ou necessitava — e que irremediavelmente perdera —, ainda que a alma fosse incapaz de traduzir esse desejo em razão e palavras. Fechava os olhos. Permanecia assim durante uns minutos. Por vezes levantava-se, caminhava até ao telefone, e de repente, como se acordasse dum sonho, sem perceber o que fazia a sua mão pousada no auscultador, regressava à rotina: ver televisão, fazer o jantar.
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