“O que é que elas querem mais?”

O discurso da advogada e feminista Leonor Caldeira na conferência do 34.º aniversário do PÚBLICO, a 5 de Março de 2024, na Culturgest, em Lisboa.

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Leonor Caldeira na conferência de aniversário do PÚBLICO, a 5 de Março de 2024 Inês Ventura
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Olá.

Muitos parabéns ao jornal PÚBLICO e a todos os jornalistas e trabalhadores que fazem dele uma referência de excelência no jornalismo português.

É uma honra para mim estar aqui e partilhar convosco as minhas reflexões sobre ser “mulher em liberdade”, apenas 50 anos depois de sermos legalmente reconhecidas como cidadãs de pleno direito e deixarmos de ter o tratamento jurídico que hoje damos aos animais – seres sencientes, mas passíveis de serem propriedade de alguém.

O jornal PÚBLICO e eu somos da mesma geração. Nascemos ambos no início dos anos 90. Foi uma época que não conheci, mas sei que em 1990:

  1. Muitas mulheres portuguesas ainda arriscavam a sua vida e integridade física em IVG clandestinas;
  2. Que a violência doméstica ainda se regia pelo sofisticado princípio jurídico “entre marido e mulher não se mete a colher”, que fazia a investigação criminal depender de queixa da vítima;
  3. a licença de maternidade eram meros 90 dias e o pai só tinha direito a dispensa do trabalho, e cito, “se no decurso da licença a seguir ao parto ocorrer a morte da mãe”;
  4. as mulheres lésbicas não podiam casar, nem adotar; e
  5. em 250 lugares na Assembleia, apenas 19 eram destinados a mulheres.

34 anos volvidos, progredimos muito.

Tanto que há quem não perceba bem quem ainda se identifique, hoje, como feminista e milite pelos direitos das mulheres ainda por assegurar.

Já temos o voto, a educação superior, o trabalho, a possibilidade de autonomia financeira, o direito ao divórcio, à interrupção voluntária da gravidez e até quotas para paridade de género em cargos políticos e empresariais… Pensarão: mas afinal, o que é que as feministas querem mais? Não têm já tudo o que queriam? Não são já todas “mulheres em liberdade”?

É para essas pessoas que me dirijo. A toda a gente que não está certa do mérito de ser feminista hoje porque, porventura, acreditam que já está tudo mais ou menos resolvido.

Não está.

O movimento feminista enfrenta hoje um desafio particular, que, ironicamente, é consequência do progresso já conquistado.

É que ao longo do século XX, o movimento feminista esteve essencialmente concentrado em alterações legislativas. Mudanças concretas na lei que embora tenham sido difíceis de conquistar, produziram efeitos logo após a sua entrada em vigor. Os efeitos sentiram-se logo de um dia para o outro.

Mas hoje, com muitos dos direitos das mulheres já consagrados na lei – embora não todos – o movimento feminista concentra-se sobretudo na mudança de comportamentos. No combate à violência doméstica e sexual, que embora seja crime, continua a acontecer sistematicamente; ao assédio de rua e no local de trabalho; à sobrecarga injusta de trabalho doméstico; à forma como somos sexualizadas sem o nosso consentimento por colegas de trabalho, de escola ou até familiares; aos estereótipos nocivos ou a condescendência com que tantas vezes somos tratadas no dia-a-dia. Ainda na semana passada, Luís Filipe Menezes, num comício de campanha da AD, falou das “meninas do Bloco” para se referir a mulheres adultas, conhecidas políticas, com currículo e carreira feita.

A libertação das mulheres destes resquícios de patriarcado já não se faz, em grande parte, pela alteração da lei. Faz-se pela alteração de mentalidades e de comportamentos, que é um processo muito mais lento e muitas vezes difícil de defender perante quem acha o feminismo obsoleto, porque os problemas já não são de resolução tão simples como as causas feministas primárias.

É difícil contabilizar com rigor as vezes que somos assediadas, agredidas ou violadas. A quantidade de queixas formalizadas não representa a realidade, em parte porque o estigma social e a forma como as vítimas são tratadas pelo sistema judicial não compensa a justiça que um tribunal pode, potencialmente, trazer.

O mesmo vale para os abusos nas relações amorosas, a discriminação no trabalho ou a sobrecarga de trabalho doméstico e reprodutivo. Não existem documentos, estatísticas ou relatórios periciais para demonstrar objetivamente e sem sombra de dúvidas a nossa experiência de vida a quem a desconhece ou não a quer conhecer.

Qual é o antídoto para estes obstáculos? Não sei. Mas tenho um ponto de partida que gostava de vos falar: a sororidade.

Precisamos, em Portugal, de mais sororidade. Não no sentido infantil de que devemos ser todas melhores amigas, dar as mãos, fazermos tranças umas às outras e vivermos felizes para sempre. Pessoalmente, desgosto de demasiadas pessoas para sugerir uma coisa dessas.

Sororidade no sentido da comunhão que existe entre irmãs ou primas. Podemos ser muito diferentes, discutir violentamente ou até nem sequer nos falarmos, mas sabemos que partilhamos, de base, uma experiência comum que nos une.

Enquanto mulheres, não pertencemos todas à mesma família, mas os episódios de condescendência, menosprezo, humilhação ou violência são demasiado parecidos. Vivemos muitas das mesmas coisas.

Sem ignorar as particularidades da vivência das mulheres mais pobres, mulheres negras, migrantes, portadoras de deficiência ou LGBT, podemos reconhecer que esse denominador comum, que é o de navegar o mundo enquanto mulher, existe.

Tal como nas famílias, podemos (e devemos) criticar-nos umas às outras. Mas se alguém trata mal um dos membros, o sobressalto deveria ser imediato. É isto que nos falta.

Em Portugal, a sororidade escasseia. Regra geral, não somos boas umas para as outras. Ainda dizemos barbaridades como “trabalhar com mulheres é um inferno”; julgamos com viés machista a vida sexual de outras mulheres, o que elas vestem, como se comportam. Ainda nos rimos e aceitamos piadas ou observações machistas feitas à nossa frente. E apesar de todo o progresso, ainda normalizamos, aqui e ali, quando o namorado ou marido de uma amiga a humilha, trai ou agride.

Estamos demasiado socializadas para competir umas com as outras. Para obter a validação e aceitação masculina. Para acomodar os egos e as vontades dos homens à nossa volta. As revindicações sobre a nossa experiência que peça aos outros que vejam o mundo da nossa perspetiva é considerada muitas vezes um “exagero” ou um mero “queixume”.

50 anos de liberdade não chegaram para criarmos, em Portugal, um ambiente sólido de compreensão e de diálogo onde mulheres possam analisar e denunciar entre si as suas experiências de desigualdade e discriminação; em que mulheres se ouvem umas às outras, validam as suas experiências, apoiam-se entre si, defendendo-se da misoginia quotidiana.

Mais: a sororidade pode ajudar-nos a combater esta ideia de que as mulheres são inerentemente vítimas, ou “frágeis”, como disse o cabeça-de-lista do Chega por Coimbra há umas semanas. Não há nada de iminentemente frágil ou submisso na condição feminina. Muito pelo contrário. Nas mulheres à nossa volta, e nas de gerações passadas, que tiveram muito menos oportunidades e direitos que hoje temos, encontramos exemplos de força, inteligência e sensatez – a par, e por vezes a mais, que qualquer homem.

As mulheres em liberdade de hoje têm toda a capacidade inata para serem o que quiserem ser. Se obstáculos existem, são fruto de condicionamentos sociais, porque séculos de patriarcado não se evaporam em meros 50 anos.

Se muitas das fontes de opressão que sentimos hoje não podem ser exatamente contabilizadas, esses factos só serão seriamente considerados quando falarmos a uma só voz. Como aconteceu, lá fora, com o movimento #metoo. Também em Portugal vivemos e assistimos a casos de assédio, nas escolas, universidades e locais de trabalho. As histórias circulam à boca pequena, os nomes dos assediadores e agressores são sussurrados, escritos em portas de casas-de-banho públicas e em contas anónimas nas redes sociais. Mas em Portugal não há #metoo. Não há denúncia pública, não há processos judiciais mediáticos, não há censura social para os agressores. Há medo, há solidão, há desamparo.

Recordemos quando em 2018 foram divulgados documentos que relatavam que Cristiano Ronaldo confessou aos seus advogados portugueses ter violado Kathryn Mayorga em 2009.

Nesses documentos, que foram posteriormente desmentidos pelo próprio e pelos seus advogados, era possível ler que Cristiano relatou “ela disse que não e pára várias vezes e, no final, perguntou “porque é que me forçaste?”, tendo ele respondido “desculpa lá”.

Não sei se aquela violação aconteceu de facto ou não, mas sei que estas alegações devem ter relevância social, para além de judicial e convocar uma reflexão coletiva. E sei que relevância social se deu a estes factos em Portugal: nenhuma. Para conhecermos mais sobre o assunto, precisámos de recorrer à imprensa estrangeira. A comunicação social portuguesa relatou o assunto com muita parcimónia; nas centenas de horas de comentário televisivo dedicado ao futebol e à sua indústria, a história não mereceu atenção e nas redes sociais assumiu-se, como certeza, que a alegada vítima era mentirosa e oportunista, e por isso merecedora de um contínuo de insultos. A idolatria exacerbada ao jogador continuou sem hesitação, sem reflexão, sem escrutínio.

É interessante confrontar estes factos, por exemplo, com a misoginia que se propaga há meses nas redes sociais contra Margarida Corceiro, famosa modelo portuguesa com milhões de seguidores, por boatos nunca confirmados de traição a um ex-namorado, jogador de futebol. Peço desculpa por trazer para aqui um exemplo digno de revistas cor-de-rosa, distante do calibre do Jornal Público, mas julgo que este episódio é relevante para compreendermos a atual a mentalidade dos portugueses sobre igualdade de género.

Portanto, boatos sobre infidelidade de uma mulher merecem, nos dias de hoje, uma fortíssima censura social. Mas alegações de violação cometida por um jogador de futebol conduzem a uma defesa acérrima do acusado e presunção de mentira da alegada vítima. É aqui que estamos. E, realmente, não estranha que não exista #metoo em Portugal.

Será que, enquanto mulheres portuguesas, estamos a defender bem nossos interesses? Quando se insulta e desacredita automaticamente uma mulher, não devíamos pensar duas vezes antes de contribuirmos para o coro?

De caminho, pensemos também na forma abjeta com que permitimos que as mulheres brasileiras sejam tratadas no nosso país. A misoginia, xenofobia, racismo e luso-tropicalismo conhecem o seu cruzamento mais intenso com a discriminação da mulher brasileira na sociedade portuguesa. Devia envergonhar-nos a forma corriqueira como se sexualiza, descredibiliza e subestima a mulher brasileira em Portugal. Enquanto mulheres não podemos tolerar esta violência.

Precisamos de uma introspeção e de nos organizarmos no combate a estas e a todas as formas de discriminação machista e xenófoba, perpetuada também pelas mulheres portuguesas.

Essa organização feminista deve também estender-se à defesa das mulheres trans, tantas vezes atacadas e vilipendiadas – por vezes até nas páginas da opinião publicada no jornal PÚBLICO. Não há dúvida que sofrem de misoginia por adotarem uma forma feminina de expressão. É urgente acolher as mulheres trans em definitivo no movimento feminista e incluí-las na nossa prática de sororidade diária.

E às mulheres negras. Sucessivamente, este género de eventos apresenta-se demasiado branco quando comparado com o mundo lá fora. Queremos, precisamos de ouvir as suas vozes e contar com a sua participação e perspetiva.

Mas não só de metade da população se faz o progresso feminista. Homens portugueses: precisamos de falar.

Se a sororidade e a união feminista são um ponto de partida, a responsabilização dos homens pela desigualdade de género é um dos pontos de chegada.

Em 2024, a igualdade de género continua a ser um tema quase exclusivo das mulheres. Sobre os direitos das mulheres, sobre emancipar as mulheres, sobre combater a violência contra as mulheres. Faz sentido: nós somos as principais interessadas. Mas será que é mesmo assim?

Já é tempo de chamar os homens a esta conversa. Sentá-los à mesa da discussão e convidá-los a refletir sobre algumas questões.

Designadamente, como a masculinidade violenta é a maior fonte de insegurança para mulheres e meninas.

A violência doméstica, o crime mais denunciado e o que mais mata em Portugal, vitima maioritariamente mulheres, sendo que os homens compõem a vasta maioria dos agressores. Em 2023, morreram em Portugal 22 pessoas vítimas de violência doméstica, sendo que 19 foram mulheres e meninas. Os agressores foram maioritariamente homens (em 73% dos casos) e de nacionalidade portuguesa (em 91% dos casos).

No que respeita aos crimes sexuais, o de abuso sexual de menores é o mais praticado. Na esmagadora maioria dos casos, por homens contra meninas, aproveitando-se da proximidade familiar para cometer estes crimes, segundo dados do Relatório Anual de Segurança Interna de 2022.

O mesmo acontece com o crime de violação, em que o padrão se repete: esmagadora maioria de homens agressores, contra maioria de vítimas mulheres.

Não significa isto que todos os homens cometem crimes violentos, obviamente. Significa, porém, que a violência física, psicológica e sexual cometida em Portugal é cometida sistematicamente por homens, contra mulheres. Isto, evidentemente, descontando as vítimas do sexo masculino que, como sabemos, apresentam ainda menos queixas que as vítimas mulheres.

O que estão os homens a fazer para reconhecer este padrão e combatê-lo entre si? Sendo Portugal um dos países mais seguros do mundo, a violência contra mulheres e meninas, cometida por homens, é o maior problema de segurança deste país. A masculinidade tem de ser necessariamente violenta? Não fará sentido uma reflexão vossa sobre esta matéria? Recai sobre vós esta grande questão de segurança nacional. O vosso silêncio nesta matéria é notado.

Quero também falar-vos sobre o papel dos homens em casa e no cuidado com a família.

Numa época em que está mais do que normalizada a presença das mulheres nas universidades e nas empresas, um dos maiores fatores de desigualdade de género continua a ser a maternidade.

No último século, aceitou-se rapidamente que as mulheres estudem e trabalhem fora de casa, mas não se exigiu dos homens que assumissem as responsabilidades parentais e o trabalho doméstico de forma paritária.

Em resultado, gerações de mulheres ficaram sobrecarregadas com profissões exigentes e com uma carga de trabalho doméstico – físico e mental – quase exclusivamente aos seus ombros.

Não é normal que pai e mãe trabalhem a tempo inteiro, mas seja a mãe que faz a maioria das tarefas domésticas e, em cima disso, ainda seja a pessoa que domina perfeitamente todos os (1) temas de saúde dos filhos: quem leva às consultas, quem assegura a toma dos medicamentos e quem sabe as alergias de cor; (2) os temas da educação: sabendo o nome dos professores, as datas dos testes, ajudando com os trabalhos de casa; e ainda (3) os tema de vida social e familiar: quem se lembra de comprar presentes de aniversário e de natal, quem se lembra de datas importantes e de compromissos familiares.

Tudo isto é uma exaustão. Uma sobrecarga de trabalho que não é justa e que sistematicamente impede as mulheres de progredirem nas suas carreiras ou, simplesmente, de terem mais paz e sossego.

Os homens só têm a ganhar em partilhar paritariamente as responsabilidades domésticas e familiares. Para além de potenciarem um vínculo afetivo maior com os filhos e familiares, que contribuirá para a sua felicidade e bem-estar, permite-lhes ter relações conjugais mais felizes e equilibradas.

Não podem ser só as mulheres a repetirem estas mensagens à exaustão. Os próprios homens precisam de redefinir a forma de ser homem, ser pai, ser filho de forma a não sobrecarregarem as mulheres das suas vidas e ultrapassar esta infantilização que lhes é permitida.

Por fim, impõe-se falar sobre a libertação dos homens das pressões e expectativas patriarcais.

Os ideais feministas e de igualdade de género não libertam só as mulheres. Os homens têm muito a ganhar se começarem a questionar algumas das expectativas que culturalmente recaem sobre si, desde logo a ideia de que devem ser fortes em todos os momentos, sem mostrar medo e muito menos chorar.

A repressão emocional a que sujeitamos os rapazes e homens, sob a justificação de que isso é que é ser um homem a sério, será o melhor para eles?

É uma visão ultrapassada, mas, pelo menos, os homens ainda não encontraram outra. Se já conseguimos reformular o que significa ser mulher, cidadã de plenos direitos, emancipada – falhámos em redefinir o que significa ser homem num mundo em que a opressão às mulheres deixou de ser aceitável e sem que se sintam ameaçados com a crescente paridade de género.

Mulheres, homens, pessoas não binárias: temos muito trabalho por fazer. Chegámos longe, mas ainda há caminho a percorrer e as ameaças de retrocesso são reais.

Esta semana, para além do aniversário do PÚBLICO, celebramos o dia da Mulher na sexta-feira e vamos a eleições legislativas no domingo.

Vivemos tempos de mudança, em que sobretudo as mulheres mais jovens parecem caminhar neste sentido de sororidade, votando mais alinhadas com os seus interesses e os interesses das outras mulheres, em partidos que não ofendem os seus direitos; os homens, por outro lado, parecem mais predispostos a alinhar com valores do passado, uma reação natural de quem não quer aceitar o progresso.

Como nos ensinou Simone de Beauvoir, basta uma crise política, económica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam postos em causa. Esses direitos nunca são adquiridos. Ser mulher em liberdade é reconhecer isto mesmo, permanecendo atenta e continuando a luta. Queremos mais, muito mais.

Obrigada.

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