Tuvalu está a digitalizar memórias e tradições. “Não podemos fugir à subida do mar”

Os habitantes de Tuvalu afectados pela subida do nível do mar estão a tentar preservar memórias e tradições. Apesar da iniciativa, existem preocupações com o custo, o acesso e o controlo dos dados.

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A ilha de Tuvalu está a procurar soluções digitais para preservar o seu património Kalolaine Fainu / The Guardian
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Dois anos depois de ter proferido um discurso na conferência das Nações Unidas sobre o clima, mergulhado até aos joelhos na água do mar, para chamar a atenção para a ameaça que paira sobre a nação de Tuvalu, o ministro Simon Kofe afirmou que o país está a caminho de se tornar uma nação digital.

A nação insular do Pacífico, situada a meio caminho entre a Austrália e o Havai, completou uma digitalização pormenorizada em 3D das suas 124 ilhas e ilhéus, que servirá de base para a criação de um clone digital de si própria, afirmou numa mensagem em Dezembro.

As autoridades estão também a arquivar o património cultural de Tuvalu, bem como a explorar um sistema de identidade digital para ligar a diáspora e um passaporte digital para que os cidadãos possam registar nascimentos, mortes e casamentos e participar em votações e outros eventos.

“Estamos a tomar estas medidas práticas porque temos de garantir a continuação da nossa soberania face ao pior cenário possível”, afirmou Simon Kofe, ministro da Justiça, da Comunicação e dos Negócios Estrangeiros. “Não podemos fugir à subida do nível do mar, mas faremos o que pudermos para proteger o nosso Estado, o nosso espírito e os nossos valores”, assegurou.

Cerca de 40% do atol principal e da capital, Funafuti, já estão submersos e prevê-se que a pequena nação fique debaixo de água até ao final do século

Tuvalu pode tornar-se a primeira nação no metaverso – uma dimensão online que utiliza a realidade aumentada e virtual (RV) para ajudar os utilizadores a interagir — mas não é a única a procurar soluções digitais para operar em situações de emergência e preservar o património.

Durante a pandemia de covid-19, quando o confinamento restringiu a circulação de pessoas, a nação insular de Barbados disse que iria entrar no metaverso para prestar serviços consulares. No metaverso de Seul, lançado no ano passado, os visitantes podem pagar impostos, jogar e visitar os pontos turísticos da cidade.

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Objectos oferecidos por pessoas de locais afectados pelos impactos das alterações climáticas que fazem parte da colecção de Trinidad e Tobago do People's Archive of Sinking and Melting da artista americana Amy Balkin Milne/LaRoche/ Thomson Reuters Foundation

Por sua vez, as plataformas digitais do Governo ucraniano evoluíram desde a invasão russa para fornecer pormenores sobre abrigos antibombas, permitir que os cidadãos votem em petições e enumerem os bens danificados. Os voluntários carregaram cópias digitais de arte e música para uma base de dados numa cloud.

Contudo, a transferência de todo um Estado-nação para o mundo virtual coloca enormes desafios técnicos, sociais e políticos, para além de suscitar preocupações sobre o acesso, a segurança e quem controla os dados, disse Nick Kelly, professor associado da Universidade de Tecnologia de Queensland.

“Grande parte do investimento actual na construção do metaverso vem de empresas privadas; se as nossas relações, amizades, compras, entretenimento, aprendizagem e negócios tiverem lugar no metaverso, então abdicamos de grande parte da nossa autonomia”, disse à Thomson Reuters Foundation. “Quem define as regras desses espaços?”, perguntou.

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Ilha de Tuvalu enfrenta a subida do nível do mar causada pelas alterações climáticas MICHAEL MILLER

Valor e respeito

Os avanços tecnológicos — desde as imagens de satélite à realidade virtual e à inteligência artificial — ajudaram a criar os chamados gémeos digitais das cidades, ou réplicas tridimensionais virtuais que podem acompanhar e prever com maior precisão os impactos climáticos e simular incêndios florestais, pandemias e ataques terroristas, para planear respostas. Estas tecnologias também estão a ser utilizadas para preservar paisagens, monumentos e tradições perdidos devido à guerra e para arquivar os que estão em risco de desaparecer devido aos impactos climáticos.

Na ilha de Vanuatu, no oceano Pacífico, as comunidades estão a liderar os esforços de digitalização para preservar as 117 línguas em perigo de extinção do país e documentar práticas tradicionais como o cultivo do taro.

Entretanto, a artista americana Amy Balkin faz crowdsourcing de objectos de locais que enfrentam ameaças climáticas, tendo recebido contribuições do Nepal ao Panamá para a sua colecção intitulada A People’s Archive of Sinking and Melting.

Objectos de locauis afectados pelas alterações climáticas da colecção de Kivalina, do Alasca no arquivo da artista americana Amy Bakin Mary Lou Saxon/Thomson Reuters Foundation
Objectos de Nova Orleães no arquivo da artista americana Amy Bakin Mary Lou Saxon/Thomson Reuters Foundation
Objectos de Nova Orleães, Louisiana, Peru e Antárctica no arquivo da artista americana Amy Bakin Mary Lou Saxon/Thomson Reuters Foundation
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Objectos de locauis afectados pelas alterações climáticas da colecção de Kivalina, do Alasca no arquivo da artista americana Amy Bakin Mary Lou Saxon/Thomson Reuters Foundation

As comunidades estão em melhor posição para decidir se, e como, as suas vidas e casas devem ser memorizadas, pelo que devem existir processos que lhes permitam agir sobre o que é “mais importante e urgente”, afirmou Kasia Paprocki, professora associada de ambiente na London School of Economics and Political Science (LSE).

Por outro lado, o Instituto Internacional para o Ambiente e o Desenvolvimento (IIED), um grupo de reflexão, e o Centro Internacional para as Alterações Climáticas e o Desenvolvimento (ICCCAD), com sede em Daca, estão a criar um museu online com fotografias, vídeos, artefactos e histórias de comunidades que enfrentam os impactos climáticos.

“Uma pessoa no Senegal, no Malawi ou no Botsuana que perde alguma coisa pode não significar muito para alguém sentado no Reino Unido ou na Alemanha”, disse Ritu Bharadwaj, investigador principal do IIED. Ainda assim, o investigador acredita que se as pessoas “virem fotografias ou vídeos do que estamos a perder como património mundial, isso ajudará a fomentar um sentimento de valor e respeito”.

No entanto, embora os objectos possam ajudar a estabelecer uma ligação com as histórias e as pessoas, o lugar continua a ser importante, afirma Jenny Newell, curadora para as alterações climáticas no Centro de Soluções Climáticas do Museu Australiano. “É tudo uma questão de lugar, e é difícil memorizar um lugar inteiro com a profundidade e a riqueza das interligações que podem ser mantidas e transmitidas entre gerações, quando o lugar desaparece”, afirmou.

Arco Digital

No mês passado, em Tuvalu, o resultado das eleições foi adiado por semanas porque o mau tempo impediu os barcos de trazerem os novos legisladores à capital para votarem no primeiro-ministro. Isso tornou mais urgente a questão que os funcionários estão a colocar à população de cerca de 12.000 habitantes: “Qual é a única coisa que querem salvar se perderem tudo?”

Podem ser artefactos de valor sentimental, sons de crianças a falar, histórias contadas pelos seus avós ou danças vibrantes nas suas festas. As recordações que cada um escolher vão ser digitalizadas e tornar-se-ão parte de uma “arca digital”, transportando a “própria alma de Tuvalue preservando a sua essência, afirmou Kofe.

Mas, embora a nação digital possa preservar elementos da cultura e da tradição de Tuvalu, existe o risco de “perder os aspectos intangíveis e dinâmicos da cultura que estão enraizados no espaço físico e na interacção social”, afirmou James Ellsmoor, director executivo da Island Innovation, uma empresa de consultoria.

Mesmo a construção de uma nação digital requer “conhecimentos técnicos, infra-estruturas e recursos significativos” que podem ser um desafio para as pequenas nações insulares, acrescentou. James Ellsmoor afirma que “garantir a acessibilidade e a inclusão de todos os tuvaluanos no espaço digital acrescenta outra camada de complexidade.”

Para além destas questões, existe o paradoxo de obrigar mais pessoas a passar mais tempo em espaços virtuais, disse Nick Kelly, professor da Universidade de Queensland. “Isto consumiria enormes quantidades de recursos — electricidade e minerais raros, em particular — o que teria um impacto significativo no agravamento das alterações climáticas”, afirmou.

No ano passado, a Austrália assinou um acordo que permite a migração de 280 pessoas de Tuvalu todos os anos devido às ameaças climáticas. À medida que mais habitantes partem, o vínculo com a terra e o oceano perde-se irremediavelmente, disse Lin, uma residente que se mudou para a Nova Zelândia com a família quando tinha oito anos de idade. “Ainda me lembro do som das ondas a baterem na costa, do sino da igreja a tocar para a oração da noite”, contou Lin, sublinhando: “Não se pode replicar digitalmente o solo que nos faz ser um povo... não se pode replicar as ligações físicas.”