E o trauma depois do parto? Excerto de O meu parto, as minhas regras, de Mia Negrão

À venda a partir de 4 de Março, o livro quer acabar com a violência obstétrica e ajudar a tomar decisões informadas. Mia Negrão é advogada e activista pelos direitos na gravidez e no parto.

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O parto é um evento marcante para a vida de quem passa por esta experiência. Quase todas as pessoas que pariram se lembram, com bastante acuidade, de pormenores do dia, de conversas paralelas no bloco de partos, de quem disse e quem fez o quê e, sobretudo, de como se sentiram. É um momento de grande vulnerabilidade e, quando não há acolhimento por parte de instituições e profissionais de saúde, a experiência pode ser terrível. Quando há abusos, maus‑tratos, imposições e quando não se envolve a grávida no processo que é dela, esta experiência pode ser traumática. Apesar de isto ser do senso comum, na realidade, o que as mães traumatizadas ouvem é: "Devias estar feliz! Pelo menos o bebé é saudável!" Este tipo de comentário, como resposta a um desabafo ou queixa, reforça o trauma e é sintomático de uma sociedade incompreensiva que normalizou a violência no parto e a falta de agência sobre o corpo, desvalorizando o trauma de parto e resultando em mães com medo de expor a situação, medo de pedir ajuda, medo de denunciar e até medo de pensar no assunto.

Ainda não existe uma definição formal de síndrome de stress pós‑traumático (PTSD) após o parto, embora já se reconheça a existência da categoria de trauma de parto. Em 2014, o parto foi adicionado à lista de eventos traumáticos associados ao desenvolvimento de PTSD e, embora muitas mães traumatizadas não preencham os critérios do diagnóstico, tal não significa que não apresentem sintomas decorrentes do trauma, especialmente nos eventos relacionados com o bebé, como os aniversários, que funcionam como gatilhos.

Foi através do livro Why Birth Trauma Matters, da psicóloga e escritora Emma Svanberg, que tomei conhecimento da Birth Trauma Scale, uma escala do trauma de parto baseada num questionário. Esta ferramenta pode ser útil para profissionais de Psicologia, para despiste de sintomas de PTSD e outras situações clínicas relacionadas com o parto, tanto para as mulheres que passaram pela experiência como para os acompanhantes que tenham presenciado a situação. Este questionário conta com 29 perguntas que medem a gravidade da PTSD de acordo com os critérios de diagnóstico do DSM‑5, publicados pela Associação Americana de Psiquiatria, em 2013.

Tenho clientes que, no final de contarem a sua história de parto, me dizem não ter bem a certeza se é real. Tentam desculpar, tentam encontrar razões para normalizar a situação e para provarem que são elas que estão erradas, que foram elas as culpadas e que elas é que se deviam ter informado mais e melhor. Tenho muitas clientes que afirmam terem tido uma out of body experience, ou seja, terem visto os acontecimentos de outra perspectiva, como se estivessem fora do próprio corpo. Este fenómeno é conhecido como dissociação e é frequente acontecer em situações extremamente traumáticas. O meu papel, enquanto advogada sensível a estas questões, é reforçar que a violência no parto não é normal, que estas mulheres não estão sozinhas e que pedir ajuda a um profissional da área da Psicologia não é motivo de vergonha.

As estatísticas mostram que cerca de 4 % das mulheres sofre de síndrome de stress pós‑traumático após o parto, porém, a verdade é que muitas mais sofrem com sintomas de trauma e ainda mais sofreram experiências de parto traumáticas, embora não as relatem.

Não são só as mulheres que sofrem com trauma de parto. Recebo, em consulta, casais, na maioria heterossexuais, traumatizados, em que o parceiro relata ter‑se sentido impotente perante uma situação de violação da mulher. Por um lado, a mulher sente, muitas vezes, que não foi protegida naquele momento vulnerável; por outro lado, o parceiro sente que falhou enquanto protector da mulher e da criança. Isto é absolutamente traumático e adiciona mais peso ao pós‑parto, o que, muitas vezes, leva à separação do casal. Claro que esta pode ser uma perspectiva patriarcal e heteronormativa, ao vermos o homem como o protector e a mulher como um ser frágil, mas se tirarmos da equação o homem e colocarmos, por exemplo, uma doula, o resultado é igual. Embora, como veremos mais à frente, a doula não tenha a função de proteger a grávida, mas sim de a capacitar para que o consiga fazer, a verdade é que também há doulas que sofrem de stress pós‑traumático após acompanharem um parto traumático por se sentirem impotentes perante uma situação de violência que não conseguiram parar.

Diagnosticar o trauma de parto exige sensibilidade, que nem sempre existe, mesmo por parte de profissionais da psicologia. Há uma analogia muito pertinente, retirada do livro Why Birth Trauma Matters: "Imaginemos um casal que tem um acidente de carro. No hospital, a atitude normal será perguntarem ao casal como estão, o que sentem, e avaliar os sintomas para PTSD. Familiares e pessoas amigas iriam preocupar‑se e oferecer apoio. Agora, vamos imaginar o mesmo cenário do acidente de carro em que no hospital estão apenas preocupados com o estado do carro. Ninguém pergunta ao casal como estão, ninguém avalia sintomas e, caso se queixem, a resposta é: 'Deviam estar felizes! O carro não foi para a sucata!'"

A ideia a reter é a de que precisamos de olhar para as pessoas como um todo e não como partes, especialmente quando falamos de grávidas e de mães, que são, infelizmente, vistas como meras incubadoras de bebés.

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