Nunca houve um período em que não existisse guerra. Para a maioria dos cidadãos, os conflitos armados não passam de notícias na televisão, na rádio ou na Internet; para quem sofre directamente as suas consequências, a materialidade das balas, dos mísseis, dos tanques, dos aviões de combate, dos drones militares, impõe-se e faz parte do quotidiano. “Mas o que acontece antes de a guerra começar?”, pergunta o fotógrafo russo Nikita Teryoshin, numa conversa por videochamada com o Ípsilon a partir de Berlim. “Como são os bastidores comerciais da guerra?”
Para encontrar resposta a estas perguntas, durante oito anos, entre 2016 e 2023, Teryoshin marcou presença em 16 feiras de armamento de 13 países de quatro continentes. O fotolivro Nothing Personal – The Back Office of War, editado em Fevereiro pela Gost Books, contém imagens que descrevem o oposto do que acontece no campo de batalha.
“[As feiras de armamento] são enormes parques de diversão para adultos, onde são servidos acepipes, vinhos e armas reluzentes”, descreve o fotógrafo. “Os cadáveres são manequins ou píxeis em ecrãs de simuladores; as bazucas e as metralhadoras estão ligadas a ecrãs planos e a acção de guerra é encenada num ambiente artificial diante de convidados de alta patente, ministros, chefes de Estado, generais e comerciantes.”
Independentemente de onde se realizam, “as feiras têm muitas coisas em comum”, observa o fotógrafo russo. Decorrem em grandes pavilhões, onde diferentes empresas anunciam os seus produtos, oferecem brindes e amuse-bouches a potenciais clientes. Têm também a particularidade de conterem na sua programação “espectáculos” de guerra ao ar livre, onde actores fazem uso de armamento real e os espectadores, a quem são fornecidos tampões para os ouvidos, podem apreciar as ondas de choque e o calor das explosões e observar os movimentos de aviões ou de tanques militares em acção. “Inicialmente, fiquei um pouco chocado com o que vi. Ali vendiam-se armas como se fossem aspiradores. Quis, desde cedo, evidenciar o sentido de banalidade que impera nestes eventos, que são inacessíveis ao grande público.”
A linguagem fotográfica de Teryoshin é mordaz, irónica, está repleta de cor, vivacidade e humor. “Humor negro”, sublinha. “Foi a forma que encontrei de lidar com esta realidade.” O marketing das empresas de armamento convidava a esta leitura, faz notar. O grupo Kalashnikov apresentava-se, numa feira na Rússia, em 2019, com o slogan “70 anos a defender a paz”. “As AK-47 são, provavelmente, as armas mais comuns e as que mais mortes provocaram no mundo desde a sua criação”, comenta, rindo-se, perplexo.
E dá outros exemplos de slogans, que utilizou para dividir em capítulos as cem imagens do livro: “Nextgen Lethality” (“Letalidade de Próxima Geração”, em tradução livre), da empresa alemã Rheinmetall, “We Are Engineering a Better Tomorrow” (“A Construir Um Futuro Melhor”), da norte-americana Lockheed Martin, ou “See First, Kill First” (“Vê Primeiro, Mata Primeiro”), da sueca Saab AB. “São slogans orwellianos”, classifica Teryoshin. “Dava muitas vezes por mim a pensar: ‘Será que estas pessoas acreditam mesmo no que escrevem ou será que querem apenas fazer uma grande piada?’”
Nikita Teryoshin recorda ter estado presente em Abu Dhabi, capital dos Emirados Árabes Unidos (EAU), em 2019, na festa do 25.º aniversário da feira Idex (International Defence Exhibition and Conference), a maior do Médio Oriente, que reúne 1500 empresas que comercializam armamento. “O bolo de aniversário estava decorado com um míssil que caía e formava uma explosão”, descreve. “As pessoas usavam pequenos garfos para se servirem do bolo que, a certa altura, parecia mesmo ter sido atingido por artilharia.” A cerca de mil quilómetros de distância da Idex, no Iémen, os EAU, em coligação com a Arábia Saudita, lançavam bombas reais sobre hospitais, mercados, mesquitas, fábricas, provocando centenas de mortes entre civis, evidencia Teryoshin. “Aquele bolo, naquele contexto, era de uma total perversão.”
Para evidenciar essa relação causal, o fotógrafo justapôs à fotografia do bolo uma em que figura um manequim com uma fractura exposta numa das pernas. “Quase nunca se vê sangue nestas feiras”, observa. “Não é desejável que os visitantes relacionem o armamento com sangue ou morte, apenas com força e protecção.” A sanitização destes centros de comércio promove a dissociação entre o produto vendido e o seu verdadeiro fim. Afinal, o marketing serve o propósito de tornar um produto apetecível – e business is business. “Foi por isso que decidi dar ao livro o título de Nothing Personal”, explica. “No final, a banalidade acabará por matar-nos a todos.”
A corrupção, a opacidade e a arma de Tchekhov
A indústria do armamento fez movimentar, em 2022, cerca de 1.842.000 milhões de dólares, de acordo com dados do Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo. Os EUA são o país do mundo que mais gasta neste sector – a sua despesa em equipamento militar representa 39% do bolo mundial –, seguido da China, Rússia, Índia, Arábia Saudita e do Reino Unido. De acordo com o mesmo instituto, “a corrupção no comércio de armas contribui com cerca de 40% para toda a corrupção nas transacções globais”. Em Dezembro de 2014, foi criado o Tratado de Comércio de Armas com o objectivo de regular internacionalmente o sector, porém os exportadores e importadores mais relevantes não o ratificaram, preferindo manter um regime de opacidade.
Talvez por isso o acesso às feiras de armamento seja altamente restrito. Elas são acessíveis apenas a empresas do sector, a potenciais clientes devidamente creditados, e a alguns jornalistas. E foi na qualidade de jornalista que Teryoshin garantiu o seu acesso. Disparando o flash continuamente, fez por mostrar a quem o visse que nada teria a esconder. Nunca apontou a lente aos rostos dos visitantes, mas não por questões de privacidade. “Não quis personalizar. O que está em causa é o fenómeno, o comércio de armas por si só. E o fetiche em seu torno, claro. Tudo gira em torno de quem tem a maior bomba, o caça mais rápido, do prestígio de ter ou de produzir armas que custam milhões de dólares.”
Uma das questões levantadas pelo fotógrafo russo, que se assume como um pacifista, tem que ver com o ciclo capitalista que se aplica também a este comércio, que é particularmente permeável à corrupção e ao excesso de aquisição por motivos alheios à estrita necessidade. A acumulação de armamento por parte dos Estados, que anualmente investem milhões, traduzir-se-á em maior desperdício (desmantelamento), em maior armazenamento ou numa maior aplicação em cenário de guerra? Poderá afirmar-se que essa acumulação, ao longo de décadas, “enche” o mundo de mais e mais armas e, por consequência, se traduz em mais e mais violência?
Para Teryoshin, a produção de armas e o uso de armas em contexto de guerra não estão dissociados. “Creio que existe uma relação entre os conflitos que existem e o negócio de armamento”, afirma. “No fundo, é como o princípio dramático da ‘arma de Tchekhov’”, refere o russo: “Se no início de uma peça de teatro existir uma arma no palco, ela será usada.”
Para os intervenientes neste mercado, a compra ou venda de armas é legitimada pela necessidade de autodefesa ou do combate a potências autocráticas, resume Teryoshin. “Por um lado, enquanto existirem ditadores como o Putin, que começam guerras contra países democráticos, é natural que seja necessário garantir protecção. Mas isso não invalida que Putin tenha comprado [e ainda compre, como afirma a revista Foreign Policy] componentes de armas a empresas aos Estados Unidos e da Europa. A moral fica sempre de fora do negócio.”
Nikita Teryoshin, que vive em Berlim há vários anos e que, com uma imagem do projecto Nothing Personal, foi distinguido pelo concurso World Press Photo, em 2020, lamenta que no século XXI “políticos e generais continuem a obrigar pessoas comuns a tornarem-se soldados, forçando-os a combater e a morrer em guerras que, em muitos casos, ninguém sabe ao certo como começaram”. “Continuamos, de certo modo, a viver tempos medievais, mas com melhor marketing, propaganda mais eficaz e tecnologia mais eficiente.”