Desejo de poeira
É possível que o pó mereça celebração e toda a arte caminhe para a poeira, não como consequência ou fatalidade, mas como desejo.
A distância fez crescer o fosso que já existia quando viviam juntas. Falavam pouco, a Ana e a mãe, resumindo o contacto a aniversários, Dia da Mãe, Páscoa, Natal, Ano Novo e mais um ou outro momento do ano, sem jamais partilhar episódios íntimos, preferindo o diálogo trivial, boiar à superfície da conversa, nunca ir ao fundo, está tudo bem?, isso é que é preciso, não tens mais nada para contar?, como vai a escola?, como vai o trabalho?, etc. A Ana passava bastante tempo em tertúlias com colegas e alguns professores das Belas Artes, a discutir pintura e pintores, especialmente as questões levantadas pela arte a partir do final do século XIX, encontros onde também se tocava e cantava, bebia e fumava. Por vezes, juntavam-se em casa da Alexandra, que tinha o seu sucesso entre os artistas, ou porque gostavam de a provocar com argumentos agnósticos ou ateístas, ou, pelo contrário, porque gostavam de a ouvir falar de religião e política. A ânsia pela verdade metafísica acabaria por se fazer presente, à laia de necessidade, apesar de esta tantas vezes cair a rebolar pela falésia do argumento racional, fragmentando-se, fazendo-se pó, o que por si lhe devolvia ressonância bíblica, aquela que sentencia um regresso ao pó, embora este regresso se refira ao ser humano e não à verdade — mas talvez a fórmula se aplique universalmente. No fundo, disse o Eduardo, professor de Estética e um dos tertulianos mais assíduos, é possível que o pó mereça celebração e toda a arte caminhe para a poeira, não como consequência ou fatalidade, mas como desejo. O Eduardo olhava para a Alexandra de cima para baixo, vendo-a como um fóssil do parolismo nacional, das massas cegas pela crendice mais absurda e infantil, cujo culto e obediência eram responsáveis por guerras e conflitos, opressão e controle, arrazoados que a Alexandra desmontava com facilidade e com uma candura tão desarmante que muitas vezes o deixava sem palavras, restando ao Eduardo gargalhar para disfarçar o embaraço da falta de argumentos. De resto, a sua comparência assídua nestas tertúlias devia-se mais à presença da Ana do que ao amor à filosofia e à arte, motivação que passava despercebida à Ana, mas não à Alexandra.
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