Alemanha: democracia iliberal?

A forma como o anti-semitismo está a ser instrumentalizado hoje em dia na Alemanha sugere que as intervenções na área da cultura não visam proteger o pluralismo ou a democracia.

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No Other Land foi o Melhor Documentário na Berlinale 2024, realizado por dois palestinianos (Basel Adra e Hamdan Ballal)e dois israelitas (Yuval Abraham e Rachel Szor). Discurso de aceitação foi considerado anti-semita festival de cinema de berlim
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Uma vaga de cancelamentos de exposições e eventos trouxe a política cultural da Alemanha para o noticiário internacional, abalando a imagem do país nestes últimos meses. A razão apresentada pelas instituições envolvidas, pelos media alemães e pelo actual Governo, a coligação centristas/liberais/verdes, é que tanto a arte como a cultura facilitam a circulação de um novo e perigoso fenómeno chamado anti-semitismo “importado”. Nesta perspectiva, a intervenção política é justificada e necessária: está em causa a segurança da minoria judaica. Mas a forma como o anti-semitismo está a ser reconceptualizado e instrumentalizado hoje em dia na Alemanha sugere que as intervenções na área da cultura não visam proteger o pluralismo ou a democracia, mas, pelo contrário, implementar uma política iliberal.

A intromissão política na programação cultural, bem como a prática de publicitar acusações de anti-semitismo sem suficiente fundamentação, precedeu em vários anos o ataque do Hamas contra comunidades do Sul de Israel, em 7 de outubro 2023. A 17 de maio de 2019, o Parlamento alemão votou a favor de uma moção contra o movimento BDS (Boicote, Desinvestimento e Sanções). Embora essa moção nunca tenha sido ratificada, institucionalizou um clima de censura informal, que recentemente tem vindo a exacerbar. Em 2020, a atmosfera macarthista já se tinha intensificado a ponto de um grande número de instituições alemãs soar o alarme, criando a “Iniciativa GG 5.3 Weltoffenheit” para contrariar a moção parlamentar. Distanciando-se dos apelos ao boicote do BDS, a Weltoffenheit anunciou rejeitar o contraboicote sancionado pelo Parlamento, argumentando que tanto boicotes quanto contraboicotes são “prejudiciais para a esfera pública democrática.” Segundo a mesma iniciativa, acusações de anti-semitismo estariam “a ser usadas de forma abusiva para afastar vozes importantes e distorcer posições críticas.” Mas estes avisos foram ignorados.

Depois de acusações de anti-semitismo terem sido injustamente generalizadas a toda a exposição, em 2022, o maior evento cultural da Alemanha, a Documenta, continuou a ser alvo de escrutínio e demandas de ausência de financiamento. No início de novembro, uma campanha de difamação resultou na demissão do curador Ranjit Hoskote do comité de seleção para a próxima edição, e na subsequente demissão de todos os restantes membros.

Assinalando uma nova deriva iliberal, os cancelamentos acumularam-se nos últimos meses, em alguns casos sem nenhuma relação com o presente conflito — para dar só um exemplo, o Museu Gropius Bau de Berlim adiou indefinidamente a exposição Spectres of Bandung: Uma Imaginação Política da Ásia-África.

No início de janeiro de 2024, o executivo de Berlim introduziu nos seus contratos de financiamento uma cláusula que condiciona o acesso a fundos públicos à adoção da definição de anti-semitismo da IHRA (Aliança Internacional para a Memória do Holocausto). Para além de se comprometerem a implementar a definição da IHRA e a reconhecer o direito de Israel à existência, os candidatos foram obrigados a garantir que nenhum dinheiro público iria de alguma forma ser canalizado para associações ou actividades classificadas como extremistas.” A cláusula foi temporariamente revogada, após protestos intensos, mas o executivo continua empenhado na sua implementação.

A definição de anti-semitismo da IHRA é controversa porque reorienta o conceito de anti-semitismo na direcção de Israel, e de críticas à sua política, classificando-as como anti-semitas. Quando a administração Trump tentou implementar a IHRA como código de conduta nos campi universitários, Kenneth Stern, o principal redator da definição, argumentou que a IHRA não pode ser juridicamente vinculativa porque colide com a Constituição. A aplicação da definição é incompatível com as protecções legais que são garantidas ao discurso político nos termos do artigo 10.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, bem como do artigo 5.º da Constituição alemã. Como Judith Butler nota no seu artigo na London Review of Books, se todas as expressões de solidariedade com o sofrimento de civis na Faixa de Gaza são, por definição, anti-semitas e, portanto, classificadas como discurso de ódio, a própria ideia de que uma discussão política deve ter lugar torna-nos “fracassos morais cúmplices de crimes hediondos.”

Mas talvez seja ainda mais importante apontar que a recente cobertura mediática mostra que “o quê” e “quem” pode ser considerado “extremista” se revela surpreendente.

No rescaldo do 7 de outubro, vários órgãos da imprensa alemã, como os jornais Die Welt, TAZ ou FAZ começaram a publicar uma série de artigos com títulos como: Edward W. Said: o Ideólogo do Terror Palestiniano; Pós-colonialismo: A Teoria que Gera o Terror; ou Apologistas do Terror Pós-colonial são alguns exemplos.

A 10 de fevereiro, o Hamburger Bahnhof, Museu de Arte Contemporânea em Berlim, emitiu um comunicado acusando um grupo de manifestantes pró-palestinianos de “discurso de ódio”. A artista Tania Bruguera, cuja performance When Your Ideas Become Civic Actions foi interrompida, negou que os manifestantes tivessem sido violentos, mas a resposta institucional constituiu um presente simbólico para uma imprensa que rapidamente reconceptualizou um clash [confronto] geracional como um clash de civilizações.

A imprensa alemã também descreveu a cerimónia de entrega de prémios da Berlinale como anti-semita, atacando em particular o realizador israelita Yuval Abraham, cujo filme No Other Land, co-realizado pelos palestinianos Basel Adra e Hamdan Ballal e ainda pela israelista Rachel Szor, ​ganhou o prémio de Melhor Documentário. O realizador e a sua família, descendentes de sobreviventes do Holocausto, receberam subsequentemente ameaças de morte.

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Yuval Abraham, à esquerda, e Basel Adra. O discurso de Abraham na Berlinale, ao receber o prémio de Melhor Documentário por No Other Land, foi considerado anti-semita cortesia berlinale
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No Other Land berlinale

A artista Jumana Manna, cuja exposição no Heidelberger Kunstverein também foi cancelada, descreveu a supressão de perspectivas palestinianas na Alemanha como um “embargo à empatia”. Enquanto cidadãos árabe-alemães são constantemente desumanizados através da normalizacão de termos como aggro-araber, o antianti-semitismo tornou-se uma forma cómoda de satisfazer os piores instintos: permite mascarar o racismo como anti-racismo. Ao mesmo tempo, as perspectivas judaicas que as autoridades afirmam querer proteger são marginalizadas por alemães que, não sendo membros da comunidade, perversamente se apropriam de um lugar de fala que não lhes pertence. Como a investigadora Emily Dische-Becker salienta, 30% dos eventos cancelados na Alemanha envolveram autores judeus, acusados de anti-semitismo.

A linha que separa o discurso político, que é constitucionalmente protegido, do discurso de ódio, que pode ser justamente proibido, é, em última análise, ideológica. É por isso preocupante que Joe Chialo, o senador de Berlim para as áreas da Cultura e da Coesão Social, afirme: “Temos de distinguir a arte do activismo com elementos artísticos.” É comum governantes eleitos promoverem ativamente algumas formas de arte em detrimento de outras, mas é raro darem às suas preferências artísticas a força de lei. Quando o fazem, deixamos de poder chamar democracias liberais aos sistemas a que presidem. A cláusula que o executivo continua a querer implementar foi designada cláusula antidiscriminação”, mas, como demonstram os acontecimentos recentes, a solidariedade com os civis em Gaza marca o limite do autoproclamado pluralismo do Estado, e a defesa dos valores liberais pode adquirir, e muitas vezes adquire, um valor de uso para aqueles que querem implementar uma agenda iliberal. No caso da Alemanha, existe um precedente histórico, que pode ser usado para descrever a presente pressão ideológica nas instituições culturais: Gleichschaltung, a política de uniformização cultural imposta durante o período do nacional-socialismo.

A autora escreve segundo o Novo Acordo Ortográfico

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