Puzzles de mil peças

Estava ajoelhada a construir um puzzle de mil peças, esses quebra-cabeças burlões que por extrapolação fazem acreditar ser de facto possível transformar caos em harmonia.

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Deixaram-na à porta de casa, depois de se assegurarem de que ela ficaria bem, depois de lhe assegurarem que fariam todos os esforços para que a Ana fosse encontrada. A São abriu a porta encontrando uma nova forma de silêncio, uma nova forma de ruído. Em pé, no meio da sala, com os braços caídos ao longo do corpo e o olhar a varrer o chão, sem se fixar, a São respirou fundo. Ouviu barulho, pareceu-lhe vir do quarto da filha. Caminhou até lá, abriu a porta: a Ana estava ajoelhada a construir um puzzle de mil peças, esses quebra-cabeças burlões que por extrapolação fazem acreditar ser de facto possível transformar caos em harmonia, descobrir na vida um sentido profundo como acontece com aquelas peças, ordenando tudo numa imagem com sentido, numa paisagem belíssima, verdejante, céu azul, com castelo ao cimo do monte e rosas em primeiro plano. A São correu até à casa de banho para vomitar, e depois de recomposta, minimamente recomposta, perguntou à filha o que se tinha passado e a Ana disse que um senhor a levou para um lugar seguro, longe do fogo, que senhor, perguntou a São, não conheço, disse a Ana encolhendo os ombros, mas mentia, pois aquele desconhecido já era na verdade conhecido, todos os dias conversavam. E deste incidente até à maioridade da Ana, a vida entre as duas foi-se desenrolando numa coreografia complexa em que as duas nunca se tocavam, nem fisicamente nem emocionalmente. A Ana ia conversando e relacionando-se com a Alexandra e com o estranho que era muito simpático e com algumas amigas da escola, enquanto a São se foi isolando mais e mais: apenas as novelas do autor francês lhe davam um alento frágil, aquela sensação de puzzle, de que o mundo poderia ter uma ordem, por mais confuso, desordenado ou escangalhado que parecesse.

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