Silêncio e esquecimento

Todos estes vazios serão possivelmente o reflexo exterior da dor da ausência, uma mãe sofre e aparece um deserto algures.

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Uma onda levara-lhe a mãe, a chuva levara-lhe uma amiga, a água da torneira levara-lhe o seu único brinquedo, a água do poço levara-lhe o marido e agora, o elemento oposto à água, o fogo, levava-lhe a filha. Imóvel, olhando para as chamas, a São ouvia aquele insistente crepitar, o ruído dos dentes do fogo a comer a madeira, a mastigar a serra. O universo é um vazio imenso, um átomo tem uma percentagem de 99 vírgula muitos noves de coisa nenhuma, e todos estes vazios serão possivelmente o reflexo exterior da dor da ausência, uma mãe sofre e aparece um deserto algures, o universo expande-se para albergar mais vazio, mais ausência, até tudo arrefecer, até tudo ficar a uma distância intransponível de tudo o resto, numa solidão infinita, sem contacto possível, sem a possibilidade de uma palavra, o destino de tudo parece ser silêncio e esquecimento, são os velhos nos lares, os mortos no cemitério, os astros, os corpos celestes, as galáxias, tudo e todos isolados pela vastidão crescente que cercará cada entidade, cada objecto. Mas talvez esta imagem seja apenas o espelho da alma da São, talvez outras almas pudessem dizer algo mais brilhante, mais radioso, mas nesta situação, não haveria outra coisa a concluir, senão um cenário de cinzas. Imóvel, a São olhava para as chamas e essa imobilidade fazia lembrar o seu falecido marido, o Urso, foi aliás esse o comentário de um guarda para o outro, repara na viúva do Urso, também olha as chamas nos olhos como fazia o marido, parada, calada e sem medo, até arrepia vê-la assim. Contudo, a imobilidade da São não era como a imobilidade do Urso, há muitas maneiras de estar quieto, a do Urso era por medo, a dela era por desesperança. A certa altura, começou a correr em direcção ao fogo, numa investida desconchavada, em desequilíbrio pela ladeira abaixo, sendo parada por um dos guardas, que a agarrou pela cintura e a fechou dentro do carro. Quando, duas horas depois, o fogo foi finalmente controlado, levaram a São a casa.

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