Massamba Thioye: “Sem 5G para toda a gente, não faremos a transição ecológica”
Director das Nações Unidas para a inovação defende que os países mais ricos devem pagar a transição digital nas regiões em desenvolvimento, permitindo que dêem o salto tecnológico com menos emissões.
Massamba Thioye, director do Centro de Inovação Global da Convenção-Quadro das Nações Unidas para as Alterações Climáticas (UNFCCC, na sigla em inglês), defende que os países mais ricos devem apoiar a transição digital das regiões em desenvolvimento, garantindo 5G a todas as populações. Só assim, assegura, será possível “dar o salto” sem exigir os mesmos recursos que foram consumidos pelas nações industrializadas, conduzindo o planeta à crise climática actual.
“Ninguém tem interesse em ver o desenvolvimento do Sul global a seguir o mesmo caminho que seguiu o Norte global. Não será sustentável. Não teremos os recursos naturais necessários. Emitirá demasiado CO2”, explicou ao PÚBLICO nesta entrevista. Massamba Thioye esteve na semana passada em Portugal, onde participou na conferência Rumo a Soluções Transformadoras de Inovação Climática, no Centro de Engenharia e Desenvolvimento de Produto CEiiA, em Matosinhos.
Qual é a missão do Centro de Inovação Global da UNFCCC, criado há dois anos?
A missão do Centro de Inovação Global é utilizar a inovação para servir a população do planeta, proporcionando-lhe bem-estar e uma vida próspera. E isto é importante porque a inovação nem sempre é utilizada para as pessoas, muitas vezes é utilizada para o poder, tanto económico como militar. Queremos agora que a inovação seja utilizada para as pessoas e, por isso, estamos a trabalhar não só com governos nacionais, mas também com municípios. E porque insistimos nas cidades? Porque são estruturas que estão mais próximas das pessoas. Ao trabalhar com cidades, podemos identificar melhor as necessidades das pessoas e desenvolver soluções de inovação.
Como é que Portugal pode encaixar-se nessa missão?
O que me fez sentir esperançoso em Portugal, e com vontade de colaborar, foi esta mentalidade de ousadia. Ouvimos aqui, [na conferência no CEIIA] diferentes entidades a afirmar que querem ser neutras em carbono já em 2030, [incluindo a Câmara do Porto e a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento da Região Norte]. Afirmam-no mesmo que não saibam como o fazer – e é isso o que queremos. É neste tipo de situação que o Centro Global de Inovação pode ajudar, porque o que queremos fazer é atingir estes objectivos ambiciosos transformando necessidades em inovação sustentável. Portugal é um aliado interessante porque conta com várias entidades com essa mentalidade de ousadia.
Pode dar um exemplo concreto de como um projecto é apoiado? Como as coisas funcionam no terreno?
O Centro de Inovação Global é novo, tem apenas dois anos. Mas começámos a fazer algumas coisas interessantes num projecto que posso partilhar convosco. Tínhamos uma cidade onde a necessidade de aquecimento era algo muito importante, e difícil de satisfazer. O que lhes propusemos foi fazer uma parceria com um data center. Como sabemos, os data centers consomem muita energia. Mas também são produtores de calor, porque a energia consumida é transformada e libertada para a atmosfera. O problema é que estavam a construir um enorme data center. Em vez de construir esta grande estrutura, propusemos fazer aquilo a que chamamos “dados distribuídos”: fazer centros mais pequenos e integrá-los em equipamentos – num hotel, por exemplo – e recuperar o calor para produzir água quente e poupar energia.
Já afirmou que estamos demasiado concentrados na descarbonização. Mas a acção climática consiste precisamente na mitigação de emissões. Pode explicar melhor a sua perspectiva?
Para ilustrar a minha visão, deixe-me dar o exemplo da minha terra, o Senegal. É um país de baixas emissões. Se a narrativa se centrar na descarbonização, eles não vão pensar nisso, não estão minimamente preocupados, pois o Senegal tem um nível de emissões muito baixo. Mas o problema é que estes países têm baixas emissões hoje, mas serão países com grandes emissões no futuro. E, por isso, temos de resolver este problema agora.
O objectivo não é descarbonizar a economia, porque aqueles países que não têm uma indústria desenvolvida não têm nada para descarbonizar. O desafio é desenvolver – mas o desenvolvimento deve estar alinhado com o código climático. Precisamos de uma narrativa na qual todos os países estejam envolvidos. O desafio não deve ser descarbonizar a indústria, porque o objectivo é continuar a crescer. O que estamos a dizer é que, sim, temos de desenvolver a economia, mas temos de o fazer de uma forma que esteja alinhada com o objectivo do clima e da sustentabilidade. Está é a narrativa certa.
Acredita que é possível conciliar estes dois caminhos, o do crescimento e da acção climática?
Temos de o fazer. Não devemos concentrar-nos no que nos parece possível. Devemos olhar para aquilo que é necessário. O desenvolvimento é necessário. Se levarmos a sério os Objectivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) das Nações Unidas, temos de desenvolver de uma forma que esteja alinhada com o mundo do clima e da sustentabilidade. Precisamos então de ter uma narrativa que considere todos os ODS de forma holística, e não se concentre apenas na descarbonização. É preciso desenvolver, mas desenvolver em linha com o código climático.
Como vê a ideia de que a tecnologia, sozinha, será capaz de resolver os problemas climáticos?
A tecnologia deve ser considerada apenas como um nível. Há muitos outros níveis em que temos de actuar. O mais importante é garantir que a tecnologia deve ser utilizada para responder às necessidades das pessoas. Este deve ser sempre o ponto de partida. Se não o fizermos, corremos o risco de desenvolver ferramentas eficientes e agradáveis que estão a resolver o problema errado, que não estão a funcionar no mundo real. Vemos isso todos os dias.
Pode dar um exemplo concreto?
Vemos isso com muita frequência em alguns países: grandes infra-estruturas construídas para melhorar a mobilidade. Ora, este não é o verdadeiro problema. O verdadeiro problema é que as pessoas não estão onde estão os produtos e serviços. Então, constroem-se muitas infra-estruturas para que a população possa ir ao local onde há produtos e serviços e, depois, voltar para casa. É um exemplo de solução para o problema errado. O verdadeiro problema é: como tornar produtos e serviços acessíveis a muitas pessoas sem que elas precisem de fazer viagens mais longas? Se olharmos primeiro para as pessoas e para as suas necessidades, conseguiremos resolver o problema certo. Se não se fizer isso, existe o risco de fazermos coisas muito boas, mas para resolver um falso problema.
Como podemos garantir que as soluções pensadas no Norte Global, por exemplo, realmente respondem a uma necessidade do Sul Global, e vice-versa?
Assegurarmo-nos de que ninguém está a ser deixado para trás pela inovação é algo importante. E isto só pode ser resolvido se nos concentrarmos efectivamente nas necessidades das pessoas de uma forma inclusiva. Estamos a colaborar com cidades do Norte Global, mas também do Sul Global. Queremos compreender a visão que têm do futuro e ajudá-las a traduzir essa visão em necessidades. E aqui há um ponto importante: muitas vezes, quando estamos a trabalhar nesse sentido, envolvendo os municípios, o que nos dizem não traduz necessariamente as suas necessidades. Por vezes, o que nos dizem diz mais respeito aos seus valores e desejos. E desejos podem ser diferentes de necessidades, especialmente nos países em desenvolvimento.
E há a questão da justiça climática...
Penso que precisamos de sensibilizar as pessoas para o facto de estarmos no mesmo barco. Vou dar um exemplo: precisamos de uma transição digital em todo o mundo. Nenhuma nação deve ser deixada para trás – e isto é do interesse de todos.
Para poder amplificar o mercado?
Sim, a transição digital global pode amplificar o mercado, mas muito mais do que isso. Ninguém tem interesse em ver o desenvolvimento do Sul Global a seguir o mesmo caminho que seguiu o Norte Global. Não será sustentável. Não teremos os recursos naturais necessários. Emitirá demasiado CO2. Portanto, o Sul global precisa de se desenvolver de um modo diferente. Mas o Sul Global só pode dar o salto se tiver acesso à tecnologia digital. É por isso que estou a dizer: a tecnologia 5G tem de ser disponibilizada em todo o lado, para toda a gente. Caso contrário, não faremos a transição ecológica, nem pensar.
Todas as pessoas aspiram a desenvolver: querem escolas, querem que os seus filhos sejam educados, querem ter bons cuidados de saúde. E assim por diante. Portanto, se o Sul seguir aos passos do Norte, isto significa que temos de construir milhões de escolas, milhões de hospitais e milhões de pontes. Toda a gente a querer ter o próprio carro – basta ver o que está a acontecer agora na China. Isto não é sustentável.
É um desejo legítimo...
É legítimo, a menos que se encontre antes uma solução para satisfazer a necessidade. Isto significa, portanto, que temos de encontrar uma forma muito digital para que as pessoas possam aceder a produtos e serviços sem precisarem de um carro, para que possam aceder à aprendizagem sem ser necessário construir uma escola. Para tal, é necessário o acesso total à tecnologia digital. Agora, se o Norte Global não entende isso e quer manter a tecnologia digital só para eles, o que vai acontecer é um desenvolvimento do Sul seguindo o exemplo do Norte.