Como é que a IA nos vê? Num mundo de homens

Aos “olhos” dos modelos de IA, o mundo é (só) de homens. Uma “pessoa” é um homem de pele clara; mulheres aparecem pouco e com menos roupa. Em 2024, a IA torna-se um eco do viés, alertam especialistas.

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Ombros largos, braços definidos, pele clara, e maçã-de-adão proeminente. Tem a barba por fazer e ligeiras rugas de expressão em torno dos olhos. Regra geral, são castanhos. Como o cabelo. Nos lábios, cheios, vê-se o esboço de um sorriso. Veste-se de forma confortável: calças de ganga e T-shirt. Ocasionalmente, aparece com uma camisa.

Esta é a visão genérica de “ser humano” ou “pessoa” produzida e difundida por grande parte dos novos modelos de inteligência artificial (IA), que permitem gerar imagens a partir dos pedidos dos utilizadores. Como o Dall-E, da OpenAI. Ou o Stable Diffusion, da Stability.AI.

A ideia de que os sistemas de IA têm algum tipo de viés não é novidade. Há anos que se corrigem problemas nesta área: desde sensores de torneiras que são incapazes de funcionar com peles mais escuras a sistemas de recrutamento que concluem que pessoas do sexo feminino são más em engenharia, porque“vêem” mais currículos de homens.

Torna-se óbvio, porém, ao pedir a programas de geração de imagens para ilustrar o mundo.

Uma pessoa na cidade? É o homem descrito no início deste texto. Alguém num cargo de liderança? Esse mesmo homem, mas de fato e gravata. Profissional de engenharia? Junta-se um capacete de segurança, óculos de protecção e um colete. O líder de um país? Novamente, a mesma personagem. Por vezes, com olhos e cabelos mais claros.

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Imagens de "pessoa" geradas pelo Dall-E DR

Os programas que são capazes de responder ao utilizador, como o ChatGPT, ignoram a redundância. “É a imagem de uma pessoa genérica”, lê-se repetidamente, quando se pede a descrição da imagem. Estão programados para evitar propagar o preconceito nas respostas – mesmo quando o reproduzem.

A falta de diversidade não choca quem trabalha em engenharia informática ou ciência de dados. “A inteligência artificial vai reflectir os padrões com que é alimentada. Neste caso, os estereótipos que perpetuamos enquanto sociedade. Se a sociedade tem um problema de género, ele vai ser espelhado nos dados que produzimos e reflectido no comportamento da IA. É tão simples quanto isso”, resume ao PÚBLICO Miriam Seoane Santos, investigadora do Centro de Informática e Sistemas da Universidade de Coimbra. Parte do seu trabalho passa por encontrar sistemas capazes de detectar bases de dados que descreve como “desequilibradas” por não representarem a diversidade humana.

“Os modelos lidam com probabilidades e geram o que é mais provável, tendo em conta o que observaram no treino”, repete Luísa Coheur, investigadora no Inesc-ID, instituto de pesquisa avançada na área das Ciências da Informação, e doutorada em Processamento de Linguagem Natural. Posições de poder foram durante décadas apanágio de homens, por isso, os sistemas traduzem ‘the president’ [em inglês, uma palavra neutra em género] como ‘o presidente homem’”, diz Helena Moniz, que dirige a associação internacional para a tradução autónoma (IAMT, na sigla inglesa) e a equivalente europeia (EAMT).

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Os homens são protagonistas nos sistemas de geração de imagens DR

“O que possui viés não é o algoritmo em si, mas sim os dados usados no treino”, acentua, por sua vez, Carolina Natal, uma especialista em electrotécnica e nanotecnologia a trabalhar na subsidiária de soluções digitais da Mercedes-Benz. Desde 2022, é embaixadora do capítulo de português das Women in Tech, uma organização global com a missão de promover a integração de mulheres no mundo da tecnologia.

A origem do problema

As ferramentas de criação de texto e imagens que existem obtêm o conhecimento que têm do mundo ao estudar enormes bibliotecas de dados — em particular, pares de imagens e a descrição correspondente. O conteúdo específico dos arquivos nem sempre é óbvio – a OpenAI, por exemplo, não fornece grandes detalhes, o que é um problema. Mas sabe-se que o grosso dos dados é informação pública disponível online, incluindo mensagens e imagens partilhadas em fóruns e redes sociais.

“No caso da OpenAI, os dados são ‘scraped’ [recolhidos automaticamente] de toda a Internet, o que por definição é tendencioso e impreciso”, assinala Daniela Braga, presidente executiva da Defined.ai, uma empresa que fornece bases de dados diversas para treinar sistemas de inteligência artificial.

“Dependendo do tipo de algoritmo [os dados recolhidos] podem ser de há cerca de 20 anos, quando a consciência em relação a tópicos como machismo, racismo, xenofobia era inferior ao que temos agora”, acrescenta Carolina Natal. “Pessoas negras, hispânicas e asiáticas raramente eram usadas em anúncios publicitários. Ainda hoje, se virmos, são raras as vezes em que existe representatividade de minorias.”

Os programas tentam reduzir resultados problemáticos ao filtrar imagens com conteúdo violento, xenófobo ou sexual – em parte para impedir a utilização dos modelos para criar conteúdo ilegal, incluindo pornografia infantil. A possibilidade de novos modelos de IA serem usados desta forma foi um dos focos da edição de 2023 da TrustCon, um encontro anual de especialistas cujo trabalho é manter a segurança de plataformas e comunidades digitais.

Isto apenas resolve parte do problema. A equipa da OpenAI, responsável pelo Dall-E, admite que o conteúdo que é filtrado contém uma sob-representação de mulheres. Consequentemente, os modelos tornam-se ainda menos diversos, com homens de meia-idade a dominar. E há sempre conteúdo que escapa – em particular quando os pedidos são feitos em línguas que não o inglês.

Para o pedido de uma imagem de “uma mulher a fugir da chuva na cidade”, em português, o GetImg.AI, uma plataforma que se baseia no modelo da Stability.AI, produz a imagem de uma mulher de calças de ganga, a agarrar um guarda-chuva, em topless. “Recentemente, pedi ao ChatGPT uma imagem de um professor e gerou-me um professor homem; passando a pedir uma ‘professora do sexo feminino’, foi gerada uma professora com um enorme decote”, relata a investigadora Luísa Coheur.

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Uma mulher a fugir da chuva DR

Os estereótipos não se limitam ao género. Um estudo recente da Universidade de Washington, nos EUA, sobre os resultados produzidos pelo modelo Stable Diffusion, faz notar que mulheres com pele escura apareciam mais frequentemente representadas de maneira sexualizada.

“O problema não é a IA, é a sociedade”, assinala a presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV), Maria do Céu Patrão Neves. “E, mais do que um espelho, o viés nos modelos torna-se um eco que repete e promove estereótipos”, alerta. “Não ver imagens de mulheres em cargos de liderança acentua alguns estereótipos que estávamos a conseguir ultrapassar. É quase um retrocesso social no papel social que a mulher tem lutado para conquistar.”

As empresas por detrás dos principais modelos usados estão cientes que existe um problema. Apesar de haver vários programas, apps e sites online para gerar imagens, os resultados tendem a ser semelhantes, porque muitos dependem das mesmas empresas — frequentemente, a Midjourney, a Stability.AI e a OpenAI. Treinar modelos do zero é muito caro e exige muitos recursos, incluindo um grande poder computacional.

“Estamos a tomar medidas para fazer face a estes riscos”, garante a equipa da Stability AI num breve email de resposta a questões do PÚBLICO. A equipa da OpenAI não responde directamente, mas remete para actualizações para filtrar conteúdo problemático. A empresa também sugere que o viés que persiste no modelo pode promover reflexões importantes. “Os educadores podem ajudar os alunos a compreender os preconceitos e a pensar de forma crítica, mostrando como certas perguntas levam a respostas tendenciosas”, escreve a equipa da OpenAI, num conjunto de perguntas e respostas sobre o viés.

Imagens são o sintoma

A falta de diversidade nas imagens geradas pelos sistemas de IA é um sintoma do preconceito que existe em todas as áreas. “Nos sistemas de recomendação de música em streaming, o trabalho de artistas mulheres é tendencialmente menos destacado”, admite Miriam Seoane Santos. “E na criação de cartas de recomendação verificou-se uma polarização na adjectivação dos candidatos do sexo masculino versus feminino.”

“Especialista”, “respeitoso” e “autêntico” eram associados a candidatos do sexo masculino; “graciosa” e “acolhedora” a candidatas mulheres. Pessoas não binárias ficam de fora. Estas conclusões surgem num estudo partilhado no final de 2023 no ArXiv, um repositório de artigos científicos gratuitos à espera de passar pelo processo de revisão por outros investigadores (a chamada “peer review).

A nível da saúde, “[o viés] pode ter impacto no desenvolvimento de novas terapias e medicamentos, levando potencialmente, por exemplo, a disparidades significativas e potencialmente trágicas nos cuidados de saúde”, diz Clara Gonçalves, chefe de operações na Inductive.AI, uma plataforma computacional que ajuda empresas e laboratórios científicos a criar modelos de simulação.

Pode ocorrer, por exemplo, que sistemas ignorem sinais de cancro da mama em homens, porque os dados não incluem exemplos suficientes.

O problema, claro, não se limita ao género. “A maioria dos modelos médicos de reconhecimento de imagem para a detecção de cancro de pele falha no reconhecimento de melanoma em peles escuras”, explica Carolina Natal, que está actualmente a completar um segundo mestrado em Inteligência Artificial Aplicada à Medicina. “Neste caso, as imagens disponíveis online e em repositórios médicos são maioritariamente de peles claras, para todos os tipos de lesões de pele, ficando o treino dos algoritmos para peles escuras muito aquém daquilo que deveria ser”, continua. “Este tipo de viés tem resultados críticos em comunidades frágeis, onde, apesar de a taxa de ocorrência de cancro de pele ser inferior, acaba por ter uma muito maior taxa de mortalidade.”

Tabela nutricional

Resolver o problema implica uma estratégia multifacetada: melhorar e diversificar as bases de dados, usar dados sintéticos (criados por algoritmos), promover equipas mais inclusivas, programar o sistema para reproduzir imagens mais diversas. São os exemplos repetidos pelas especialistas com quem o PÚBLICO falou.

A portuguesa Daniela Braga está a tentar combater o problema com a Defined.AI, empresa que fornece dados, transparentes, que as empresas têm autorização para usar, para treinar sistemas de inteligência artificial. “Nós combatemos o enviesamento de resultados certificando que os nossos dados representam diversidade de idiomas, idades, orientações sexuais e antecedentes culturais”, explica a profissional, que espera ver mais transparência sobre as bases de dados usadas.

Uma das propostas é uma espécie de “tabela nutricional” para modelos de IA. “À semelhança de uma tabela nutricional alimentar que explica os ingredientes utilizados nos produtos e a sua origem, também os modelos deveriam descrever a mesma coisa: X dados correspondem a X demografias, foram pagos de forma justa, são legais, pois foram consentidos, são representativos”, enumera.

A legislação contribui para isto. A proposta para regular a inteligência artificial que está a ser ultimada na União Europeia estipula que sistemas de inteligência artificial de alto risco, utilizados em serviços cruciais, como a saúde e a energia, têm de ser testados com dados suficientemente representativos para minimizar o risco de enviesamento.

Uma das formas de corrigir directamente o modelo, sem alterar as bases de dados, é forçar a diversidade. “Isto pode ser feito no pré-processamento do prompt [pedido]. Quando pedimos ‘faz uma imagem de um astronauta’, se género ou etnia não tiverem sido especificados, o modelo tem ‘permissão’ para adicionar alterações”, advoga Carolina Natal.

Do lado do utilizador deve-se questionar o modelo. Por defeito, as conversas que as pessoas têm com sistemas como o ChatGPT, o Gemini da Google, ou o Copilot da Microsoft são usadas para melhorar os sistemas. Isto pode ser alterado nas definições, mas quem opta por partilhar informação pode alertar para o viés. “É preciso garantir esta existência de mecanismos de feedback, em que o humano possa corrigir, retreinar, reforçar comportamentos positivos e mitigar os que não são desejados”, reforça Miriam Santos. “É desta forma que se quebram loops perniciosos em que a ‘máquina se alimenta e se valida a si mesma’.”

O aumento da visibilidade do problema, no entanto, contribui para a correcção – é a perspectiva, optimista, da presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida. “O primeiro passo é sempre reconhecer um problema. Creio que isso já aconteceu”, esclarece Maria do Céu Patrão Neves. “A presença de viés é óbvia. E acredito que vai ajudar a corrigir o problema: porque um problema tão amplo e óbvio tem de ser corrigido.”.

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