Ímpar
Monstros, lobos e empatia
Bem-estar, famílias e relações, moda, celebridades... Um mundo que não é fútil.
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Há uns anos, uma vez por semana cruzava-me com "as mães do piano". Enquanto os nossos filhos estavam nas aulas de instrumento, nós ficávamos numa salinha de espera, na escola. Confesso que era nessa hora que tentava pôr em dia algum trabalho, como os livros que tinha de ler para preparar entrevistas, mas havia alturas em que era interrompida, como daquela vez em que uma mãe — que, repetidamente exaltava as qualidades musicais da criança, uma menina que era "um mini Mozart", um "pequeno génio" — contou que a filha sempre dormira com ela, e, como entretanto tinha crescido, o pai passara a dormir na sala. "Os pequenos génios são assim, têm as suas particularidades", justificou, num encolher de ombros.
Entretanto, a aula terminou e eu fiquei atenta para ver quem era o "mini Mozart". Era uma menina que andaria nos 10/11 anos, redondinha, muito bem penteada, cheia de laços na cabeça e birrenta. A mãe transformou toda a sua aparente autoconfiança em subserviência às vontades da filha. Muitos anos depois, cruzei-me com a menina na praia, era já uma jovem adulta. Os laços mantinham-se, desta vez nas alças de um fato de banho, num chapéu com um lenço esvoaçante, tal como a túnica branca. Toda ela parecia saída de um filme de Hollywood do início dos anos 1960. Atrás, vinha a mãe, com os sacos da praia, a compô-la. Reconhecemo-nos, sorrimos, acenámos e seguimos os nossos caminhos. Na minha cabeça tinha duas perguntas: "O 'mini Mozart' tornou-se numa famosa instrumentista? Ainda dormem juntas?"
Quando o Pais Suficientemente Bons, de Pedro Strecht, aterrou na minha secretária, li-o num ápice. O livro — que navega entre a experiência em consultório do pedopsiquiatra português e a teoria de Donald Woods Winnicott, um pedopsiquiatra britânico que morreu há mais de 50 anos e que definiu o significado de "pais suficientemente bons" — fez-me lembrar aquela mãe e filha porque fala de pais que se revezam na sua cama para manter meninos a dormir com eles até uma idade avançada, também fala de crianças que impõem as suas vontades, de crianças que agridem os pais, física e psicologicamente.
Na entrevista a Pedro Strecht pergunto: "No livro refere a violência dos filhos contra os pais. É uma resposta à pressão?" que os pais incutem nas crianças para serem as melhores. Pedro Strecht responde: "É uma resposta perante a construção da personalidade ou da estrutura da criança e, sobretudo, do adolescente, que acaba por surgir como consequência de, por um lado, demasiada protecção e dentro dessa, a dificuldade dos pais em marcarem suficientemente bem regras e limites aos filhos. Por exemplo, em dizerem "não", em darem rotinas e alguma previsibilidade. As crianças vão crescendo e funcionando pelo seu impulso, impondo a sua vontade que depois também passa para a escola e há muitas atitudes de oposição confronto com a autoridade do professor, etc.. Há pais, em consulta que dizem que o filho lhes bate. E eu respondo: "Mas bate, com 6/7 anos? Basta agarrar na mão e dizer ‘não bates’, ‘estás quieto’, ‘não fazes isso’." Agora se estivermos a falar de 13 ou 14 anos em que a desproporção física [entre pais e filhos] já não existe... De facto, temos e assistimos a um número crescente de situações de violência intrafamiliar, com filhos a maltratar os pais psicologicamente e fisicamente."
Em suma: Os pais, ao não fazerem nada, aquelas atitudes e faltas que deixam passar, vão com os meninos para a escola e interferem na relação destes com os professores e com os colegas. Um problema que sai de casa e vai para a escola, para casa dos avós, para casa dos amigos... Strecht conta ainda de uma professora de 1.º ciclo cujos alunos querem ser, todos, os primeiros da fila do almoço, o que retrata a forma como são educados, para serem os maiores, os mais bem-sucedidos. E nada disto está errado, desde o princípio do mundo que os pais querem o melhor para os seus filhos e querem que estes os superem. O que me parece é que se esqueceram dos filhos dos outros, de ensinar que o que é bom para nós, também é bom para os outros; que se nós merecemos, os outros também merecem. A empatia, a solidariedade, o acreditarmos no bem comum é o que nos devia guiar na vida em sociedade. Em vez disso, estamos a formar a "geração mais qualificada de sempre" para ser a "geração mais bestificada de sempre", a olhar para o seu umbigo, à espera que Portugal se cumpra para si e os outros que se lixem.
A antropóloga brasileira Mirian Goldenberg fala de lobos, de heróis e anti-heróis, sobre como controlar aquele monstro que temos dentro de nós e que culpamos da correria que é a nossa vida (e que prejudica também a forma como somos pais): "A simbiose do lobo mau com o lobo bom pode ajudar a transformar os conflitos em cooperação, além de revelar alguns dos superpoderes invisíveis que estão escondidos dentro de nós."
A professora Elsa de Barros reflecte sobre o livro da filósofa Joke J. Hermsen, que entrevistei na sua casa, em Amesterdão, na Primavera de 2022, Melancolia em Tempos de Perturbação e vai ao encontro de Mirian Goldenberg quando escreve: "A melancolia 'dá alma' à pessoa ou inspira-a, porque a alma só ganha vida se for capaz de manter viva a chama de emoções opostas sem extinguir nenhuma delas."
Escreve a psicóloga Raquel Raimundo sobre a importância de olharmos para os outros e de identificarmos heróis, pessoas que admiramos. Se a autora fala de Nelson Mandela, seria interessante sabermos quem são os heróis dos mais novos. Serão pessoas que deram a vida pelos outros ou que vivem para si mesmas? Com quem nos queremos parecer? "As maiores lutas que travamos na vida são as que ocorrem dentro de nós. Que lobo vamos deixar ganhar? O da raiva, ganância, ciúme, vingança, mentira, inveja, arrogância, cinismo, ego e ressentimento? Ou o da paz, esperança, amor, generosidade, empatia, gentileza, humildade, bondade, verdade e vida?"
Boa semana!