A campanha de desinformação que o Kremlin montou contra Zelensky

Documentos a que o The Washington Post teve acesso mostram que o Kremlin criou equipas para difundir fake news nas redes sociais para tentar dividir a Ucrânia e prejudicar a imagem de Zelensky.

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Várias publicações nas redes sociais continham fake news com o objectivo de prejudicar a opinião pública sobre Volodymyr Zelensky EPA/STRINGER
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Quando, no mês passado, começaram a surgir notícias de que o Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, se estaria a preparar para demitir o seu principal comandante militar, Valery Zaluzhny, responsáveis de Moscovo rejubilaram. Segundo alguns documentos internos do Kremlin, aos quais o The Washington Post teve acesso, eles já estavam a tentar provocar essa ruptura há muitos meses.

“Precisamos de reforçar o conflito entre Zaluzhny e Zelensky, na linha de ‘ele pretende demiti-lo’”, escreveu há um ano um estratego político do Kremlin, depois de uma reunião com altos responsáveis russos e spin doctors de Moscovo, de acordo com os documentos.

A administração do Presidente russo, Vladimir Putin, ordenou a um grupo de estrategos políticos russos que usassem as redes sociais e notícias falsas para forçar a narrativa de que Zelensky estaria histérico e fraco e que, por temer ser posto de lado estaria a ver-se livre dos perigosos.

A ordem do Kremlin levou à criação de milhares de publicações nas redes sociais e centenas de artigos falsos, criados por troll farms, que circularam na Ucrânia e na Europa e tentaram explorar os rumores das tensões que existiriam entre os dois líderes ucranianos, de acordo com vários documentos do Kremlin obtidos por um serviço de informação europeu e a que o The Washington Post teve acesso.

Os mais de cem documentos foram partilhados com o The Post para expor, pela primeira vez, a escala da propaganda do Kremlin que visa Zelensky, com o objectivo de dividir e desestabilizar a sociedade ucraniana – acções que Moscovo descreveu como operações psicológicas.

A sociedade ucraniana, no entanto, permaneceu, até agora, surpreendentemente unida desde a invasão da Rússia, de acordo com sondagens de opinião. Os responsáveis de Moscovo, atestam os documentos, manifestaram muitas vezes frustração perante a incapacidade de prejudicar Zelensky e fomentar a divisão. Um deles queixou-se de que o Presidente ucraniano era como Brad Pitt, uma estrela global com uma imagem que não pode ser manchada.

Mas com o afastamento do general Zaluzhny a estagnação das linhas da frente e a incógnita sobre o apoio financeiro militar e dos Estados Unidos há quem, em Kiev, esteja preocupado com a possibilidade de a propaganda russa poder começar a erodir a coesão e a moral nacional.

Os tempos mais difíceis estão próximos, disse um responsável de segurança europeu que, como outros, pediu a condição de anonimato para falar sobre assuntos sensíveis. A Rússia sobreviveu e estão a preparar uma nova campanha que consiste em três vectores principais: primeiro, pressionar a linha da frente; segundo, atacar a infra-estrutura ucraniana; e, em terceiro, esta campanha de desestabilização.

Os quatro objectivos-chave de Moscovo

Os documentos mostram como, em Janeiro de 2023, o chefe da administração presidencial do Kremlin, Serguei Kiriyenko, deu a um grupo de estrategos políticos e responsáveis a tarefa de se estabelecerem nas redes sociais ucranianas para distribuir desinformação.

A acção baseou-se num antigo projecto que Kiriyenko, assessor de Putin de longa data, tinha posto em prática para prejudicar o apoio ocidental à Ucrânia em países como França e Alemanha, como vários artigos do The Post demonstraram. O grupo de propaganda europeia foi supervisionado por Tatyana Matveeva, um dos delegados de Kiriyenko, chefe do Departamento de Desenvolvimento de Tecnologias de Comunicação e Informação do Kremlin, de acordo com os documentos.

No final de 2022, depois de a Ucrânia fazer recuar as forças russas em Kharkiv (Carcóvia) e Kherson e de responsáveis em Kiev começarem a falar sobre uma grande contra-ofensiva na Primavera no Leste e no Sul, Kiriyenko criou uma segunda equipa focada em desestabilizar a Ucrânia como um todo, dizem os documentos. A equipa foi liderada por Alexander Kharichev, um dos seus delegados mais próximos, um burocrata conhecido em alguns círculos de Moscovo como o corrector ou o gestor de eleições por garantir que as eleições nacionais correm como o Kremlin pretende.

Numa reunião a 16 de Janeiro de 2023, mostram os documentos, Kiryenko apresentou quatro objectivos-chave para a equipa de propaganda: desacreditar a liderança militar e política de Kiev; dividir a elite ucraniana, desmoralizar as tropas; e desorientar a população.

O sucesso da equipa seria medido segundo alguns indicadores-chave. Teriam de diminuir as avaliações positivas do pessoal do gabinete de Zelensky, do Governo ucraniano e do comando das forças armadas da Ucrânia e fomentar na população ucraniana a crença de que a elite do país estaria a trabalhar apenas para si própria. Um crescimento no número de demissões no Governo e de conflitos públicos também seria um sinal de sucesso. Para aumentar o medo e a ansiedade, as baixas na guerra da Ucrânia seriam exageradas.

O porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, Kharichev e Matveeva não responderem a pedidos detalhados para comentar o conteúdo dos documentos.

Estes mostram que o progresso foi monitorizado em reuniões de frequência quase semanal no Kremlin, nas quais os estrategos faziam apresentações sobre quais teriam sido as publicações plantadas nas redes sociais ucranianas que tinham sido mais lidas e calculavam a distribuição global dos conteúdos produzidos. Também levaram a cabo sondagens de opinião ao nível da confiança em Zelensky e na liderança militar do país.

Entre o material que destacaram estava uma publicação de Facebook que alegava que a família de um soldado morto não tinha recebido qualquer ajuda do Estado. Segundo uma das avaliações, a publicação arrecadou mais de dois milhões de visualizações. De acordo com outra, um dos posts mais bem sucedidos, com o objectivo de desorientar a população foi inserido um vídeo falso no Telegram que alegava que o principal foco de guerra das autoridades em Kiev era lutar até ao último ucraniano”.

Começar do zero

No início de Março de 2023, dezenas de trolls contratados criavam mais de 1300 textos e 37 mil comentários nas redes sociais ucranianas todas as semanas, de acordo com uma das avaliações. Os registos mostram que os empregados em troll farms ganhavam 60 mil rublos por mês, ou 660 dólares, para escreverem 100 comentários por dia.

A maioria dos relatórios dos estrategos, apresentados aos seus mestres políticos, focava-se no volume de conteúdo produzido e no número total de visualizações. Mas, pela primeira vez em cinco meses, mostravam poucos resultados. As sondagens promovidas pelo Kremlin demonstravam que a confiança em Zelensky continuava consistentemente alta, com 68% a 73,3% dos ucranianos a confiarem no Presidente entre Fevereiro e Junho.

Em Agosto, no entanto, as sondagens do Kremlin mostraram que este indicador caíra para 65,4%. É impossível avaliar a precisão destas sondagens e não é claro como estão a ser efectuadas pelos russos na Ucrânia.

Um inquérito feito pelo Centro Razumkov, de Kiev, mostrou, em Julho, que a confiança em Zelensky estaria nos 81%. A mais recente a ser publicada pelo centro, a 8 de Fevereiro, mostrou que esta tinha baixado para 69%.

Os estrategos tinham noção da dificuldade da sua tarefa. Neste momento, estamos a ter de entrar no panorama dos media ucranianos praticamente do zero, dizia um relatório de Abril. O segmento pró-russo foi completamente purgado dos media de massas e das redes sociais.

Os estrategos aconselharam a promoção de uma rede de canais de Telegram em conjunto com o Twitter e o Facebook/Instagram como a forma mais eficaz de penetrar o espaço mediático da Ucrânia, realçando que a audiência do Telegram no país tinha crescido 600% ao longo do último ano. Depois da invasão, o Governo de Zelensky criou uma única fonte de notícias televisivas, mas os ucranianos afastaram-se da programação, dizendo que as dificuldades militares da Ucrânia não eram noticiadas e discutidas o suficiente.

O Telegram tornou-se a mais importante fonte de notícias, ainda mais importante do que os media tradicionais”, disse o responsável de segurança europeia. É impossível bloqueá-lo.”

Os estrategos de Moscovo sublinharam a necessidade de evitar propaganda pró-russa flagrante de forma a ganhar a confiança das audiências. É claro que não conseguimos voar com os nossos antigos recursos”, escreveu um estratego a 5 de Abril, depois de uma reunião do Kremlin.

Na primeira semana de Maio, uma publicação que os estrategos do Kremlin plantaram no Facebook, dizendo que Valery Zaluzhny se podia tornar o próximo Presidente da Ucrânia”, originou 4,3 milhões de visualizações, segundo uma das avaliações. O Kremlin emitiu ordens para criar publicações semelhantes ou realidade adicional – termo usado pelos responsáveis russos para descrever fake news –, incluindo relatos de que os líderes ocidentais estariam à procura de um substituto para Zelensky e que Zaluzhny pretendia interromper a contra-ofensiva.

A Meta, a empresa-mãe do Facebook, disse num comunicado, em relação aos posts russos sobre Zaluzhny e a alegada falta de apoio estatal para o soldado morto, que tinha estado a monitorizar e a bloquear contas, páginas e sites geridos por esta campanha, desde 2022, incluindo essas duas páginas que foram rapidamente detectadas e desactivadas pela sua equipa de segurança.

Irredutíveis, os estrategos plantaram uma série de artigos nas redes sociais da Ucrânia. Em Maio, um deles dizia no título: Zelensky está a agarrar-se ao trono (...) a democracia ucraniana está a ser liquidada, mostram os documentos. Outro, em Junho, procurou aproveitar o que consideravam ser um desaparecimento prolongado de Zaluzhny do olhar público. Alguns bloggers foram instruídos para publicar comentários a declarar: É por isto que Zaluzhny desapareceu. Porque podia e devia ter ficado com o lugar de Zelensky.

Reciclar desinformação

Os estrategos também procuraram explorar a campanha de Kiriyenko na Europa Ocidental, reciclando a sua desinformação para uso na Ucrânia. As tácticas na campanha europeia incluíram a clonagem e usurpação de sites governamentais e de media, como o do Le Monde e o do Ministério dos Negócios Estrangeiros francês, e depois publicar lá conteúdo falso, com o intuito de denegrir o Governo ucraniano. Esta operação foi chamada “Doppelgänger” (“sósia”, em alemão) por responsáveis da União Europeia. Também incluiu a criação de contas falsas no X, ou Twitter, para figuras conhecidas como a ministra dos Negócios Estrangeiros alemã, Annalena Baerbock. Os estrategos procuraram inserir publicações desses sites ou contas nas redes sociais ucranianas, como se fossem notícias ou comentários genuínos.

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Valery Zaluzhny, comandante das Forças Armadas ucranianas EPA/OLEG PETRASYUK

Depois de a conta falsa de Baerbock declarar, em Setembro, que a guerra na Ucrânia iria acabar em três meses, as autoridades alemãs lançaram uma investigação e encontraram mais de 50 mil contas falsas a coordenar propaganda pró-russa, incluindo aquelas que estavam a promover o tweet. Responsáveis acreditam que as contas falsas eram uma extensão da campanha Doppelgänger, noticiou a Der Spiegel.

A Operação Doppelgänger foi exposta pela primeira vez pela Meta em Setembro de 2022 e depois pelas autoridades, no último Verão, e relacionada com o Reliable Recent News, um site de fake news cuja origem estará relacionada com duas empresas russas: a Social Design Agency e a Structura National Technologies. Os documentos do Kremlin atestam que os chefes das duas empresas – Ilya Gambashidze e Nikolai Tupikin – trabalhavam com Kiriyenko e outra responsável do Kremlin, Sofiya Zakharova, que coordenava acções na Europa e Ucrânia. Ela é o cérebro, disse o responsável de segurança europeu.

A União Europeia impôs sanções em Julho contra Gambashidze e as duas empresas pelo que consideraram ter sido o seu papel na criação de sites falsos e contas das redes sociais “usurpando a identidade de órgãos de comunicação nacionais e sites governamentais como parte de uma campanha híbrida da Rússia contra a UE e os seus Estados-membros. Gambashidze e Tupikin foram denunciados pelo Departamento de Estado norte-americano em Novembro pelo seu papel em acções do Kremlin para difundir desinformação na América Latina.

Zakharova, Gambashidze e Tupikin não responderam a pedidos detalhados para comentar o conteúdo dos documentos.

Gambashidze, Tupikin e os seus colegas propuseram narrativas que esperavam poder destruir a imagem de Zelensky no Ocidente do herói do país pequeno que luta contra um mal global”, mostra um dos documentos enviados em Abril. Pretenderam retratar Zelensky como um actor apenas capaz de seguir um guião escrito para ele pelos EUA e a NATO. Os apoiantes ocidentais seriam retratados como a ficar cansados dele. Propuseram distribuir documentos falsos do Governo ucraniano que serviriam como prova de esquemas de compras militares e sugerir que Zelensky e a família tinham contas bancárias no Ocidente, atestam os documentos.

Os planos do Kremlin levaram à produção de centenas de artigos e milhares de posts nas redes sociais que foram traduzidos para francês, alemão e inglês. Um artigo, feito para a audiência francesa, tinha como título: O maestro ficou farto dos concertos de Zelensky: as iniciativas dos EUA na Ucrânia fazem crer que Washington pretende ver-se livre de Zelensky em breve, sem discutir isto com Paris.

Com base neste artigo, um dos estrategos ordenou a um empregado da troll farm que criasse posts em francês nas redes sociais que diziam que Washington pretendia substituir Zelensky por um Presidente mais capaz e que a França iria continuar silenciosa e a armar e a financiar a Ucrânia.

Outro artigo descrevia como Zelensky tinha obrigado as forças ucranianas a defender Bakhmut contra a vontade de Zaluzhny, levando, dizia o texto, à morte de 250 mil soldados ucranianos. O número de mortes foi muito exagerado, apesar de se ter tratado de uma batalha brutal para a cidade.

Um dos objectivos dos estrategos, referem responsáveis de segurança europeus, foi garantir que os assuntos difundidos nas redes sociais europeias chegariam à Ucrânia, através de republicações e da sua amplificação, ou por serem recolhidos por políticos ucranianos que quisessem potenciar os seus perfis com publicações provocatórias.

Eles procuram os pontos fracos. Usam o que criaram e o que está debaixo dos seus pés, disse um segundo responsável de segurança europeu. Tudo é feito para desmoralizar as pessoas.

Os estrategos também tinham tabelas de preços para plantar comentários pró-russos em órgãos sociais proeminentes no Ocidente e para pagar a influencers das redes sociais nos Estados Unidos e na Europa que “quisessem trabalhar com clientes russos. Os documentos dizem que os russos estavam dispostos a pagar até 39 mil dólares para plantar comentários pró-russos em grandes órgãos de comunicação no Ocidente.

Vai haver, praticamente em todo o lado, colunistas, líderes de opinião pública, antigos diplomatas, responsáveis, professores e por aí fora, lê-se numa nota anexada à tabela de preços. Não é claro, pelos documentos, se o Kremlin conseguiu inserir esses textos em publicações ocidentais ou se alguém foi pago.

À medida que o Inverno chegava a Kiev, vários vídeos deep fake que mostravam Zaluzhny a considerar Zelensky inimigo do seu povo e a incentivar um golpe começaram a surgir. Os vídeos foram rapidamente denunciados como falsos e não provocaram qualquer impacto real na Ucrânia. Mas um responsável de segurança europeu diz que o Kremlin só estava a testar o terreno para futuras deep fakes.

É muito caro, mas pode funcionar, disse. Em tempo adequado, pode ser usado.”

Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post

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