Acesso aberto e conhecimento: ecos de uma panaceia em progresso

Numa altura em teremos de lidar com as consequências da hiperprodução científicas, a alternativa não pode ser a anarquia do ecossistema científico nem a rejeição de sistemas de avaliação das revistas.

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O artigo do PÚBLICO “Pagar para publicar: ciência em Portugal cada vez mais refém de revistas predadoras” traz contributos importantes à discussão sobre as desordens do acesso aberto (OA) na ciência.

Contudo, há quatro problemas por articular.

Primeiro problema: é importante compreender que o OA não é bom, não é mau e não é neutro. É aquilo que o sistema de publicação académica dele quiser fazer. Com efeito, é na proposta de OA que se consolidam as revistas predadoras que exploram a sua infraestrutura não regulada para gerar lucro sempre da mesma forma: impondo Article Processing Charges (APC), das quais passa a depender a publicação de um trabalho.

E aqui temos dois dilemas.

a) Importa perceber que a essência do OA não se esgota unicamente na abertura do conteúdo produzido. O OA é muito mais do que isso, porque rejeita hierarquias nos processos de produção, consulta e visibilidade do conhecimento, ao mesmo tempo que promove a democratização desse conhecimento e combate fenómenos de replicação intensiva.

b) Não se combate o problema se, a montante, não alargarmos o significado de revista predadora. É preciso determinar que uma revista não tem necessariamente de ser fraudulenta (com componente auto-descritiva suspeita) para encaixar no espectro predatório, e que bastará a mercantilização de ciência que pratica deliberadamente na forma de APC injustificadas, para dever passar a encaixar nesse rótulo.

Segundo problema: as pálidas definições existentes de revista predatória promovem a inexistência de regulação da infraestrutura do OA. Sem definição, não há luta possível. Uma definição maximalista de revista predadora, articulada em infraestrutura centralizada e regulada, capaz de filtrar aquele que é o OA benigno, seria uma proposta a considerar, sempre que atenuados os conflitos de interesse resultantes dessa infraestrutura centralizada.

Terceiro problema: acresce a iliteracia entre investigadores, ou uma indisponibilidade crítica, para discernir entre valor e qualidade da revista e métrica. Isto tem implicações na execução financeira das unidades de investigação e no bolso dos próprios investigadores que, à primeira oportunidade (entenda-se rapidez e facilidade) de publicarem em revistas com alto fator de impacto (das quais dependem muitos concursos), optam por pagar APC obrigatórias e do domínio do surreal – um cenário habitual em algumas revistas OA do espectro predatório que estão indexadas na Scopus e/ou Web of Science.

E aqui entra o quarto problema: uma espécie de tiro ao lado que se tem materializado num completo desajustamento da acção exercida. Há mais ressentimento direccionado por actores políticos a revistas híbridas, selectivas, do que vontade para atuar de forma consistente sobre as tais desordens do OA.

Com efeito, para além das opções oferecidas por estas revistas híbridas para o green open access (a abertura do conhecimento não se esgota na versão editada e formatada do artigo) e os vários “acordos transformativos” que vão crescendo nestas revistas, dá-se ainda o caso de a simples publicação nestas revistas híbridas ser, em regra, uma prova de superação, dado o seu posicionamento charneira nos diferentes campos disciplinares, o que as torna o veículo preferencial para uma verdadeira acumulação sistemática do conhecimento.

Neste cenário, o decisor político deverá perceber que a única forma de contrariar as revistas híbridas da publicação académica tradicional não deverá passar por uma rejeição declarada dessas mesmas revistas, pelo exposto acima e a bem do próprio conhecimento científico. Deverá passar antes por um empoderamento efetivo das revistas em OA, de iniciativa voluntarista (com publicação e acesso gratuitos), que usam verdadeiramente o OA para prestar um serviço desprendido à ciência, longe do precipício que é a mercantilização de conhecimento. Um empoderamento que só será possível com a tal rejeição musculada do lado nocivo desse OA.

Numa altura em que se torna óbvio que vamos ter de lidar com as consequências da hiperprodução e sofreguidão científicas – que atiraram o conhecimento para todos os lados possíveis, determinando fenómenos de replicação intensiva e de pseudoconhecimento, um pouco à imagem das desordens informativas na esfera de produção noticiosa –, a alternativa não pode ser a anarquia do ecossistema científico nem a rejeição, em forma de posição ideológica, de sistemas de avaliação das revistas. O caminho estará na capacidade de encetar um combate aos quatro problemas elencados anteriormente.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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