Propagação de doenças infecciosas: o lado menos conhecido das alterações climáticas

Qual a relação entre as alterações climáticas e a saúde? Esta é uma questão que se coloca.

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Debate composto por presidente e a vice-presidente do instituto, respectivamente, Filomeno Fortes e Filomena Pereira, bem como o professor associado e especialista em medicina das viagens Jorge Atouguia, e ainda o director do Hospital das Forças Armadas, comodoro Francisco Gamito Ferreira. António Saraiva
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A detecção, pela primeira vez, em Lisboa do mosquito Aedes albopictus, transmissor de doenças como dengue e zika, constituiu um sinal de alerta para uma relação que tem vindo a mobilizar os esforços das autoridades de saúde e dos especialistas em saúde pública: a exportação de doenças tropicais, das zonas onde são endémicas para outras regiões, em particular a Europa. Não é inédita a presença deste mosquito em Portugal, já tendo sido identificado em 2017, no Norte, em 2018 no Algarve, e em 2022 no Alentejo. O que prova é que a espécie se tem vindo a instalar em países onde, até alguns anos, era inexistente, como Itália, França, Espanha, num movimento impulsionado pelo aquecimento global.

Este é um fenómeno a que a Organização Mundial da Saúde (OMS) está atenta, estimando que, até 2040, as mortes em consequência dos efeitos negativos das alterações globais aumentem para cerca de 250 mil, por ano, a nível mundial. Só nos países europeus, os factores de stress ambiental são responsáveis por 12 a 18% dos óbitos. E o que explica esta ameaça à saúde pública? É que os mosquitos que transmitem estas doenças sobrevivem mais a temperaturas mais elevadas, ficando mais activos e mais rápidos, logo, picando mais. E, com o prolongamento das estações quentes a que se tem vindo a assistir, os mosquitos ganham mais tempo de actividade, o que acentua o risco.

Vigilância entomológica precisa-se

Já em 2021 a OMS havia elencado as mudanças climáticas como a maior ameaça à saúde humana, com o calor extremo, nomeadamente, a ser responsável por meio milhão de mortes anuais. O dengue é exemplificativo: sabe-se que o ovo do mosquito Aedes sobrevive em zonas secas até um ano; ora, se estiver infectado e cair sobre ele uma gota de água, eclode e lança mosquitos infectados para o ar, com o risco real de propagação da doença.

Este risco é de tal ordem que levou a OMS a preconizar uma epidemia causada por uma doença tropical, nomeadamente dengue, à semelhança do que aconteceu com o coronavírus. O que a organização antecipa é que os surtos epidémicos de dengue, que ainda estão localizados em algumas zonas do globo, em qualquer altura poderão levar a uma situação dessas.

Para responder a este quadro, impõe-se um investimento nos mecanismos de vigilância. Em Portugal, a Direcção-Geral da Saúde (DGS) reforçou a vigilância entomológica e epidemiológica quando o mosquito Aedes foi identificado na região de Lisboa, ainda que não tenham sido detectados agentes causadores da doença nos espécimes analisados. No que concerne a luta anti-vectorial, isto é, contra os mosquitos hospedeiros dos vírus, a vigilância entomológica é essencial, assumindo maior relevância à medida que se consolida o impacto das alterações climáticas na propagação das doenças tropicais infecciosas.

Falta literacia

Igualmente relevante é intervir ao nível da medicina de urgência no sentido de uma maior sensibilização dos profissionais para o despiste destas doenças. Tal como, a montante, reforçar a medicina das viagens, dada a sua importância na era da globalização. Do ponto de vista da saúde global, as viagens podem constituir um factor de risco, com a circulação de pessoas a potenciar a exportação de agentes infecciosos. No entanto, colocam-se alguns desafios a este nível, nomeadamente no que toca à literacia. O objectivo último de quem procura a consulta do viajante é ser vacinado; porém, há todo um conjunto de informações, nomeadamente sobre o risco associado ao destino, que é essencial transmitir, mas para o qual o viajante não está receptivo. Na prática, não é fácil ter uma conversa sobre problemas potenciais, em particular sobre doenças infecciosas desta natureza.

E, no entanto, os destinos de quem procura esta consulta são, com frequência, zonas muito quentes e muito húmidas, precisamente aquelas que constituem um dos focos de preocupação dos especialistas: é que são zonas em que proliferam os vectores, sendo que, quanto maior a concentração de mosquitos, maior o risco. Assim foi em todas as regiões onde surgiram novos surtos de doença.

Porém, emerge aqui outra dificuldade, pois em alguns destes países procurados pelos viajantes não existem dados fiáveis que permitam avaliar o risco e, em consequência, transmitir essa informação na consulta. O que há a fazer é diminuir a possibilidade de o viajante ser fonte de infecção – e é esse o mérito da vacina, nomeadamente das duas existentes para o dengue.

E o futuro?

Neste contexto, e à luz da aprendizagem com a recente pandemia de COVID-19, ganha acuidade a junção de saberes para lidar com as implicações das alterações climáticas na saúde, nomeadamente no caso das doenças transmitidas por vectores. Um dos desafios inerentes prende-se com a capacidade de identificar as emergências em saúde pública, mediante alertas rápidos e atempados, que permitam pôr em marcha a cadeia de comando caso haja uma ameaça. Nesse sentido, a Direcção-Geral de Saúde anunciou já estar a trabalhar no desenho de um plano de acção que envolva, precisamente, as várias áreas governativas, ao mesmo que, a nível internacional, estão a ser discutidas alterações ao regulamento sanitário e está a ser equacionado um tratado pandémico.

Estas foram reflexões que emergiram do Fórum “Saúde Global”, uma iniciativa com a chancela da Takeda que reuniu no Instituto de Higiene e Medicina Tropical (IHMT), em Lisboa, vários especialistas em saúde pública, tendo contado com a presença da directora-geral de Saúde, Rita Sá Machado. Para o debate contribuíram o presidente e a vice-presidente do instituto, respectivamente, Filomeno Fortes e Filomena Pereira, bem como o professor associado e especialista em medicina das viagens Jorge Atouguia, e ainda o director do Hospital das Forças Armadas, comodoro Francisco Gamito Ferreira.