Especialista defende proibição da pesca da lampreia devido à escassez. Penacova cancela festival
No rio Mondego, onde a pesca de lampreia é uma tradição ancestral, este poderá ser o pior ano de sempre. “Deveríamos fechar a pesca. A qualquer animal deve ser dada a oportunidade para se reproduzir.”
O director do Centro de Ciências do Mar e do Ambiente (Mare) defende a proibição da pesca da lampreia, para garantir a recuperação de uma espécie que escasseia cada vez mais nos rios portugueses. A Câmara de Penacova decidiu cancelar o Festival da Lampreia, que normalmente decorria em Fevereiro, face à escassez daquele peixe, confirmou nesta quarta-feira o presidente do município.
"A situação piorou. É uma sucessão de anos maus. 2017, 2019, 2022 e 2023 foram anos maus, motivados pela seca e por outras situações que ainda não se consegue explicar, visto que há um desconhecimento do que acontece com a espécie no mar, em que pode haver mais mortalidade", disse Pedro Raposo, director do Mare e especialista em peixes anádromos (espécies que, como a lampreia, se reproduzem em água doce, mas que se desenvolvem até à forma adulta no mar).
O investigador salientou que esta não é uma situação exclusiva de Portugal, em Espanha e França também se regista escassez de lampreia, mas o país conta com a agravante de ser o limite sul de distribuição da espécie.
Se, no passado, a seca e consequente redução do caudal dos rios poderia explicar as quebras da população que sobe os rios, este ano "os caudais não são maus", mas a situação não melhorou e "tudo leva a crer que possa ser o pior ano" desde que a equipa regista a passagem da lampreia no açude-ponte de Coimbra.
Naquela passagem pelo Mondego, rio onde a pesca de lampreia é uma tradição ancestral, registaram-se apenas 295 espécimes em 2017, 717 em 2019, 1328 espécimes em 2020, 832 em 2022, e 1508 em 2023, registos muito distantes dos valores máximos (mais de 20 mil em 2014 e cerca de 11 mil em 2018).
Ciclo de vida de sete anos
"Se fôssemos coerentes, deveríamos fechar a pesca. A qualquer animal deveria ser dada a oportunidade para se reproduzir, se não daqui a 7 anos [ciclo de vida da lampreia] será ainda pior", defendeu o director do Mare, instituição que colabora com a Câmara de Penacova num colóquio que vai realizar-se no sábado, onde será abordado o declínio da lampreia no território português.
Para Pedro Raposo, é fundamental reduzir ao máximo a mortalidade das lampreias pela pesca, de forma a tentar garantir uma recuperação das suas populações nos rios portugueses.
Segundo o investigador, as entidades públicas precisam de assumir medidas, vincando que todos os anos a sua equipa alerta para o risco de manter a pesca aberta, mas que a preocupação da comunidade científica não surtiu, até ao momento, qualquer efeito.
"O risco que corremos é o de a própria actividade dos pescadores ser muito prejudicada nos próximos anos e, até, acabar por completo. A minha preocupação não é apenas com as lampreias, mas com toda a actividade profissional e cultura que gira à volta desta espécie e que se pode perder", frisou.
Para Pedro Raposo, o declínio poderá estar associado a alguma alteração no mar, onde as lampreias passam cerca de cinco anos da sua vida, antes de subirem o rio para se reproduzirem.
"Nenhum cientista português ou estrangeiro sabe o que se passa [no mar]. Colocamos como hipótese que as alterações climáticas tenham alterado os comportamentos das lampreias no mar e que possam estar a afastar-se da zona", referiu, dando conta de que está em curso um projecto de investigação europeu que procura perceber melhor a distribuição e mortalidade de espécies migradoras no mar, no qual o Mare participa.
Falta de lampreia obriga Penacova a cancelar festival
Não é a primeira vez que a escassez de lampreia ameaça ou cancela este evento tradicional em Penacova. A edição de 2024 foi cancelada devido à falta de lampreia, confirma o autarca Álvaro Coimbra, referindo que o período para a lampreia vai até Abril, mas não se prevê que haja uma grande alteração face ao cenário actual.
Em 2022, o município foi obrigado a suspender o festival também face à escassez daquela espécie que se reproduz no rio Mondego, tendo depois realizado o certame em Abril. "Um evento gastronómico pressupõe abundância e, neste momento, a lampreia é pouca e muito cara", justificou o autarca.
Por aquele concelho ser conhecido como uma referência na confecção da lampreia, Álvaro Coimbra decidiu avançar com um colóquio para abordar o declínio da espécie no território português, num evento que terá também como intenção exigir medidas para que o actual cenário seja revertido.
Organizado pela Câmara de Penacova e pela Confraria da Lampreia de Penacova, em colaboração com o Centro de Ciências do Mar e do Ambiente, o colóquio irá decorrer no sábado, no auditório municipal. "Tendo em conta que somos conhecidos como a capital da lampreia, tínhamos de fazer alguma coisa e convidar a comunidade científica para debater esta questão", argumenta Álvaro Coimbra, que admite a possibilidade de se proibir a pesca da lampreia, salientando que, para o município, "em primeiro lugar, está a preservação da espécie".
Apesar de tudo, não é o preço (uma lampreia inteira ronda os 150 euros) que tem afastado os clientes, mas sim a falta do peixe, notou. "No domingo, tive mais de 50 chamadas para lampreia e tive de dizer que não havia", disse Jorge Cota, proprietário de um restaurante, acrescentando que tem reservas que poderão ser canceladas porque não terá "lampreia para satisfazer" os comensais.
Assim, ao que tudo indica, aos inconsoláveis apreciadores de lampreia resta rumar ao Minho onde se assinala o festim da lampreia em São Pedro da Torre, no concelho de Valença, entre 15 e 17 de Março, no Festival Gastronómico Sabores da Lampreia.