Desastre e mansidão
Não conseguiu concentrar-se na leitura, ficando a reler a mesma frase várias vezes — “não sou marinheiro de navegar no mar, mas de contemplar o mar”.
À noite, a febre subiu bastante. A São torrou pão, fez um chá, a Ana disse que não tinha fome, que não conseguia comer, a São insistiu, tens de te alimentar. Sentou-se ao lado da cama da filha durante uns minutos, à espera de ver o que o termómetro ditava: quarenta. A São pôs-lhe uma toalha molhada na testa, começando a sentir-se mal, havia ali uma emergência triste do passado, como quem lava uma boneca de papel que se desfaz entre as mãos. Aos poucos, a agonia e o mal-estar transformaram-se em irritação: a São levantou-se derrubando o banco onde se sentara e saiu do quarto. A tremer, acendeu um cigarro. Ligou a televisão para ouvir alguma coisa além da chuva a bater na janela, além do vento a soprar, além do som do portão enferrujado que já não fechava bem, além das correntes de um antigo baloiço do quintal do vizinho, além do murmulho das árvores, além do ruído que o seu passado fazia. Pegou no telefone, pois teve vontade de ligar à Alexandra, falar com alguém, mas desistiu, deixando-se cair no sofá. Abriu um dos romances do escritor francês, mas não conseguiu concentrar-se na leitura, ficando a reler a mesma frase várias vezes — “não sou marinheiro de navegar no mar, mas de contemplar o mar” —, porque a meio se intrometiam as suas preocupações e os seus medos, “não sou marinheiro…”, “mar”, recomeçava. Acabou por adormecer no sofá e acordar por ter mais uma vez sonhado com a noite em que o asilo desabou, com a noite em que a Glória morreu esmagada por uma viga de ferro, não tendo ido para criada como sonhava, como sonhava a maior parte das meninas do asilo. O rosto plácido da Glória, com um sorriso perfeito, daqueles que a Alexandra dizia fazer milagres, criava uma sensação de estranheza e de grotesco, ao misturar o desastre com a mansidão, compondo um quadro em que a violência da derrocada do edifício e o enxovalho da morte coabitavam com aquele rosto sereno e inocente. Ouviu um barulho vindo do quarto da filha, entreabriu a porta: a Ana alucinava com a febre. A São fechou os olhos, respirou fundo, fechou a porta, amanhã levo-a ao hospital, pensou, e foi-se deitar sem se lembrar de desligar a televisão cujo ruído da estática se aliara ao da chuva.
O contributo do PÚBLICO para a vida democrática e cívica do país reside na força da relação que estabelece com os seus leitores.Para continuar a ler este artigo assine o PÚBLICO.Ligue - nos através do 808 200 095 ou envie-nos um email para assinaturas.online@publico.pt.