Arouca Geopark: alteração de trilhos para “estradões” terá causado dano “irreparável”
ICNF diz que obra foi realizada para combater fogos mas descaracterizou caminhos tradicionais do parque classificado pela UNESCO, que estarão agora a ser usados como pistas de motocrosse.
Onde até há pouco tempo existiam caminhos com vegetação, limitados por guias de pedra com décadas de existência, há agora arruamentos de terra em mau estado de conservação. Este é o cenário de alguns percursos do Arouca Geopark - classificado como Geoparque Mundial da UNESCO - depois de uma intervenção realizada no ano passado pelo Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), na serra da Freita.
Há uns meses, entrar no percurso pedestre PR16 (um dos 17 trilhos do Arouca Geopark), na entrada do lado do parque de campismo do Merujal, significava ter de se pôr os pés num caminho de cerca de três metros de largura, ladeado por vegetação, e, mais à frente, por guias de pedra que lá estavam pelo menos desde os tempos da exploração das minas de volfrâmio, quando a Europa estava a ser fustigada pela Segunda Guerra Mundial. Hoje, já não é assim.
Agora, depois de se sair do alcatrão da estrada M511, entra-se para a montanha por uma via de terra com mais de cinco metros de largura. Depois de alguns minutos percorridos pelo mesmo trilho, marcado por pneus de veículos a motor que contribuíram para o estado irregular do solo, o cenário é o mesmo. E, ao longo de vários metros, sinais de vegetação ou guias de pedra a limitar a via não existem.
O alargamento das vias pedestres pôs em estado de alerta quem é utilizador do parque há dezenas de anos, por força de se considerar que os caminhos tradicionais foram descaracterizados, e levantou dúvidas a quem está à frente da união de freguesias da qual faz parte este território, que questiona a utilidade dos trabalhos realizados.
A paisagem daquelas montanhas sofreu alterações e tornou-se mais apelativa para motociclistas, agora com acesso melhorado para executarem manobras de motocrosse, num espaço que lhe deveria estar interdito. A Câmara de Arouca diz que a responsabilidade da obra é do ICNF, que cola esta empreitada à implementação da Rede Primária de Faixas de Gestão de Combustíveis (RPFGC).
O PÚBLICO fez este trilho acompanhado por Pedro Oliveira, que aos 67 anos já percorreu as entranhas da serra da Freita, por estes e outros caminhos, mais vezes do que aquelas de que se consegue lembrar. O professor de um estabelecimento de ensino universitário do Porto nasceu em São João da Madeira, no distrito de Aveiro, o mesmo onde se encontra o geoparque classificado pela UNESCO.
Desde tenra idade, muito antes de se mudar para o Porto, onde vive há vários anos, foi descobrindo os segredos das montanhas arouquesas. Não se esquece deles porque, “pelo menos duas vezes por mês”, volta à serra para revisitar a pé os vários caminhos que lá existem. E, garante, as vias que percorre regularmente estão muito diferentes.
“Dano irreparável”
No “final de Novembro do ano passado”, numa dessas visitas, foi surpreendido com o cenário que encontrou: “O meu choque foi perceber que o caminho tradicional, no seu desenho, na sua própria conservação ao longo de dezenas, ou centenas, de anos, foi destruído de um momento para o outro por uma terraplanagem da qual não se percebe o sentido e que não acautelou a preservação da memória dos caminhos que deram sentido a esta serra, construídos pelas populações durante anos e anos, com trabalho voluntário. Isso foi destruído num ápice.”
O dano que diz ter sido causado, considera, é “irreparável”. “A vegetação cresce. Mas as guias de pedra não podem ser recuperadas”, sublinha.
O professor universitário, doutorado em Matemática Aplicada pela Universidade de Strathclyde, em Glasgow, garante que em determinadas zonas do percurso percorrido, até há pouco tempo, os limites do trilho estavam definidos com pedra. E chama a atenção para a evidência da sua destruição: há zonas onde se vê pedra partida, agora espalhada pelo solo que foi alvo de intervenção pela obra de alargamento da via de “cerca de três metros” para aproximadamente “cinco a sete metros”.
Pedro Oliveira indaga sobre a possibilidade de a intervenção ter sido realizada no âmbito do combate aos incêndios, nomeadamente para facilitar a entrada de veículos de emergência (o ICNF confirma que foi esse o motivo). E conclui não haver justificação para isso. “A largura que existia era suficiente para deixar passar um carro dos bombeiros”, acredita.
Em 2016, aquela área, junto ao parque de campismo e à aldeia do Merujal, foi consumida pelas chamas. Passados estes anos, naquela geografia, a acumulação de combustível ainda não parece ser um problema. Porém, se passar a ser, reafirma que o acesso ao local já lhe parecia assegurado no passado, antes desta intervenção.
Confrontado com esta realidade, e com a abertura de um novo “estradão”, que é possível avistar do percurso PR16, por baixo da montanha onde estão as eólicas e o Radar Meteorológico de Arouca, e onde em Novembro viu uma máquina de escavação estacionada, enviou pedidos de esclarecimento à Câmara de Arouca, à Associação Geoparque de Arouca (AGA) e ao ICNF e alertou o PÚBLICO e a imprensa local.
O jornal Discurso Directo deu conta de que o assunto foi levado à assembleia municipal do final de Dezembro. Lê-se em notícia de 5 de Janeiro que a presidente da autarquia, Margarida Belém (PS), que também lidera a associação que gere o Geopark, foi surpreendida pela “intervenção do ICNF”. Noutro recorte do Roda Viva, de 27 de Novembro do ano passado, lê-se que a zona natural da serra da Freita está a ser usada como “pista de motocrosse”.
Ao PÚBLICO, o professor universitário de 67 anos refere também já se ter cruzado várias vezes com motards durante as suas caminhadas. Algo que acredita ter piorado desde o alargamento dos trilhos, que afirma estarem a ser usados por motociclistas de “moto e moto-quatro”. No solo, confirma o PÚBLICO, há marcas de rodas de veículos a motor, em zonas onde o piso está desnivelado, o que contribui para que a caminhada se torne mais difícil.
Pedro Oliveira assinala outros perigos: “Muitas vezes damos de caras com motards, o que é inaceitável, porque é um parque. E não há ninguém que fiscalize esta situação e que a impeça. Há sítios onde até diz que é proibida a circulação. Mas os motards continuam a andar por aí e às vezes encontramo-los frente a frente. Um dia pode haver um acidente e nem se sabe de quem é a culpa.”
Preocupado com o futuro do Arouca Geopark, o professor pretende prevenir que mais “danos” sejam causados, como os que diz ter detectado no trilho PR16, mas também no PR15. E, por força da “descaracterização” dos percursos, teme ainda que a UNESCO retire a classificação ao parque.
“Obra sem critério”
A obra realizada também mereceu um comentário do presidente da União de Freguesias de Cabreiros e Albergaria da Serra, Alberto Tavares Nunes (PS), em entrevista ao Roda Viva de 18 de Janeiro. O autarca dizia não vislumbrar “qualquer benefício local nas movimentações das terraplanagens” e considerava que o património natural, no decurso de uma obra “sem nenhum critério” e “apenas para fazer metros quadrados de limpeza”, não estava a ser salvaguardado, podendo existir “risco de se degradar" este património.
O responsável pela união de freguesias do território serrano do concelho dizia também não ter sido previamente avisado de que a obra avançaria. Ainda que considerasse não ter de existir esse aviso prévio, porque os caminhos estão dentro de um baldio, defendia na mesma entrevista ser de interesse local haver mais “flexibilidade” e “coordenação de todas as partes” nesta matéria. Contactado pelo PÚBLICO por telefone, Alberto Tavares Nunes subscreve o que já tinha dito ao Roda Viva.
O PÚBLICO pediu esclarecimentos ao ICNF, à Câmara de Arouca e à Associação Geoparque de Arouca – a esta última entidade as perguntas seguiram por via do gabinete de comunicação da autarquia, tendo em conta que é a presidente da câmara que está à frente da AGA.
Câmara não acompanhou obra
“Os trabalhos que foram executados dizem respeito à implementação da Rede Primária de Faixas de Gestão de Combustível (RPFGC) no concelho de Arouca e são da responsabilidade do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF). Importa clarificar que não são trabalhos de terraplanagem, mas antes de beneficiação de caminhos já existentes com vista a garantir o cumprimento dos requisitos da referida rede primária, que tem como objectivo a prevenção estrutural de incêndios”, responde a autarquia, também em nome da AGA.
Pergunta-se se a obra foi autorizada e acompanhada pela autarquia ou pela AGA e se as duas entidades tinham conhecimento de que os trabalhos iam avançar. Responde-se que “no decurso dos trabalhos, a entidade responsável pelos mesmos – ICNF – reuniu-se com o município, apresentando um ponto de situação dos referidos trabalhos em termos de execução”. Porém, nem autarquia nem AGA autorizaram ou acompanharam a obra por, adianta-se, não terem “qualquer competência nesta matéria”, mas sim “o ICNF”.
Sobre os danos que terão sido causados no geoparque, com a descaracterização dos trilhos tradicionais, e sobre a possibilidade de serem reparados, a autarquia desresponsabiliza-se e adianta que “os terrenos em causa não são públicos”. “Trata-se de terrenos baldios geridos pela respectiva comissão de compartes, em co-gestão com o ICNF”, sublinha.
O município dá conta ainda, via email, de que o Geopark não dispões de vigilantes, que pudessem ter detectado ou até comunicado qualquer falha na empreitada. “Os vigilantes da natureza são um dispositivo do ICNF”, insiste.
Pista de motocrosse
A propósito de os trilhos estarem a ser usados como pista de motocrosse, o gabinete de comunicação da autarquia adianta existirem “situações de incumprimento” que “têm sido reportadas às autoridades com competência para actuarem neste âmbito (GNR e ICNF)”, e que município e AGA “têm procurado sensibilizar para a importância do usufruto responsável do património natural”.
Como o geoparque é reconhecido pela UNESCO, o PÚBLICO pergunta se a câmara não teme, perante a descaracterização dos caminhos, que o espaço perca essa classificação. “A classificação como geoparque mundial da UNESCO está sobretudo relacionada com o reconhecimento pelo excepcional património geológico de relevância internacional deste território, que abrange todo o concelho de Arouca (328km2), com particular destaque para as trilobites gigantes de Canelas, para as pedras parideiras da Castanheira e para os icnofósseis do Vale do Paiva”, avança. “Nenhum dos geossítios atrás referidos se encontra ameaçado com esta intervenção”, considera a autarquia.
Perguntou-se o mesmo ao Conselho Internacional dos Monumentos e Sítios - Icomos, organização não-governamental mundial associada à UNESCO, que entende que deve ser a própria UNESCO a fazer essa avaliação.
ICNF não confirma danos
Apesar de existirem testemunhos nesse sentido e relatos na imprensa local sobre o assunto, o ICNF diz não terem sido identificadas “situações relativas à destruição de guias de pedra nos caminhos”. Diz antes que “pode, no entanto, ter ocorrido o espalhamento de terra sobre as mesmas”, no âmbito de uma obra que diz estar enquadrada na implementação da RPFGC.
“Esta intervenção na rede viária florestal vem reforçar a rede de infra-estruturas de acessibilidade para o apoio ao combate a incêndios rurais”, avança, “num território rural” que considera ser de “elevada perigosidade de incêndio”.
Os trabalhos, afirma o instituto, “tiveram início a 16 de Abril de 2023” e foram concluídos “a 21 de Novembro” do mesmo ano. A intervenção contemplou “a beneficiação de caminhos florestais existentes em Merujal, Serlei, Gestoso, Côvo e Pico do Gralheiro, num total de 5200 metros, dos quais 3145 metros coincidem com os troços definidos para os [trilhos] PR16 e PR15”.
“A intervenção nessa rede viária cingiu-se à regularização da plataforma do caminho e ao alargamento pontual do mesmo nas situações em que a circulação rodoviária dos meios de supressão de incêndios se encontrava comprometida”, lê-se em resposta enviada por email.
Acerca do mau estado dos trilhos, o ICNF diz ter identificado “problemas pontuais de drenagem nas zonas de solo granítico”, mas considera terem origem em fenómenos de “precipitação intensa”, “agravados pela utilização da rede viária intervencionada para a prática de actividades desportivas motorizadas, com veículos todo-o-terreno e motociclos”. A correcção desses problemas “terá de passar pela instalação de passagens hidráulicas, melhorando o sistema de drenagem das águas pluviais”, afirma.