Mix do dia: os algoritmos do Spotify não reagem apenas ao gosto musical, moldam-no
Investigação mostrou que o objectivo não é necessariamente prever com precisão o gosto, mas sim tentar prever coisas como a atenção ou o engagement.
Enquanto estou na minha secretária a escrever este artigo, o Spotify escolhe a próxima faixa da minha "lista diária" gerada por algoritmos. A escolha de hoje tem o título ligeiramente estranho — e, no entanto, bem específico — de "lo-fi anti-folk wednesday early morning". Para que conste, não sou de todo anti-folk. Pondo de lado este rótulo estranho, é uma situação bastante comum.
Estamos familiarizados com algoritmos em plataformas tecnológicas que escolhem música, televisão, produtos ou mesmo destinos de viagem por nós.
Mesmo algo aparentemente tão pessoal como o gosto musical é transformado pela forma como estas plataformas intervêm. Ao fazer corresponder a escolha de música à hora do dia, a lista diária é apenas mais uma forma de introduzir ainda mais previsões sobre o nosso gosto musical nas nossas rotinas diárias ou mesmo horárias.
Já vivemos com o streaming há algum tempo. Para muitas pessoas, as nossas escolhas musicais passaram de ser informadas pela rádio, imprensa musical, revistas e programas de televisão, para um nível de personalização mais apurado.
As plataformas de streaming têm dados sobre nós, mas também têm os dados sobre toda a gente que usa a plataforma. Mesmo com todos estes dados disponíveis, o gosto continua a ser ilusório. Investigação mostrou que o objectivo não é necessariamente prever com precisão o gosto, mas sim tentar prever coisas como a atenção ou o engagement.
Se utilizarmos dados para analisar e prever o gosto musical de um indivíduo, teremos inevitavelmente algum impacto sobre ele. Este problema está bem estabelecido na investigação sociológica. Por outras palavras, quando se estuda o mundo social, é provável que também o alteremos. As pessoas alteram o seu comportamento em resposta ao facto de serem analisadas.
Quando imaginamos os nossos gostos, partimos do princípio de que existe um ponto de partida. Imaginamos que os nossos gostos existem e que estes sistemas algorítmicos estão a aprender a responder-lhes. Mas o gosto não existe num vácuo. Se o Spotify continuar a propor géneros ou artistas específicos, é muito mais provável que desenvolvas um interesse ou mesmo uma preferência por essa música. Isto, por sua vez, produz mais dados para reforçar essa previsão.
Uma escolha de música automatizada, ou mesmo uma lista de reprodução gerada por algoritmos, não é assim tão consequente isoladamente. O que importa é a repetição deste processo ao longo do tempo. É através da exposição constante a estas previsões personalizadas que o nosso gosto sofre mutações em resposta àquilo a que estamos expostos.
A forma como os ciclos repetidos de feedback do algoritmo se transformam no nosso gosto musical é um exemplo de uma mudança mais alargada que descrevi na minha investigação como a "sociedade recursiva". Numa sociedade recursiva, estamos rodeados de processos analíticos e algorítmicos repetidos que se prolongaram durante um período significativo.
As escolhas e os seus resultados tornaram-se mais algorítmicos e menos humanos. Isto ocorre repetidamente ao longo do tempo, cada um informando os passos seguintes. O resultado é que a sociedade e as nossas experiências individuais são um produto de processos recursivos em que a análise automatizada de dados molda e afecta as escolhas que fazemos e as escolhas feitas sobre nós. Isto também é anterior ao Spotify, incluindo coisas como as recomendações de CD na Amazon.
Como estas escolhas alimentam os mesmos ciclos vezes sem conta, o resultado é que se torna impossível separarmos as nossas identidades, os nossos conhecimentos e os nossos gostos dos ciclos de processamento algorítmico. Não podemos separar o gosto musical dos algoritmos. Mesmo que hoje deixemos de usar as plataformas de streaming e as suas recomendações, elas influenciaram-nos. E, se o fizeres, é provável que os sítios a que recorres para descobrir música sejam um produto da influência de outras pessoas nas suas escolhas.
Estes processos não têm um ponto de origem, vivemos entre eles há demasiado tempo. Talvez não te lembres de um tempo em que não consumias música e outras culturas através de plataformas de streaming.
É claro que o gosto musical nunca foi inteiramente pessoal. Sempre foi um produto da forma como somos socializados na cultura através de redes de amizade, localização, família, cobertura mediática, instituições e cenas culturais mais alargadas.
Isto é importante porque os nossos gostos em coisas como a música são fundamentais para a forma como formulamos e apresentamos as nossas identidades, bem como para a forma como nos relacionamos com as pessoas, desenvolvemos um sentimento de pertença e nos posicionamos na sociedade. Se os sistemas algorítmicos estão a moldar os nossos gostos, estão também a moldar a forma como nos entendemos a nós próprios.
As listas diárias do Spotify dizem-nos algo sobre a forma como os nossos gostos estão a ser antecipados de modo a manter-nos a utilizar estes sistemas. A sua adaptação pormenorizada e reactiva à hora do dia e às diferentes facetas da nossa audição de música diz-nos quão detalhados se tornaram os dados sobre os nossos gostos.
A lista diária só pode existir numa sociedade recursiva, onde estamos familiarizados com sistemas personalizados que acumularam e analisaram dados sobre nós durante longos períodos de tempo. Se revela alguma coisa sobre nós é que, através de muitos loops algorítmicos, os nossos gostos estão a ser construídos para nós ao longo do tempo — mudando-nos, em vez de reflectir quem somos.
Exclusivo P3/ The Conversation
David Beer é professor de Sociologia na Universidade de York