Política científica: desígnios e (des)equilíbrios

Há gente mesmo muito preparada para dar ímpeto a um país, em todas as áreas. Pode é não ser o nosso.

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A ciência tem sido ignorada enquanto desígnio nacional, negando-se-lhe o potencial transformador que teve e tem noutros países, para onde acabamos por exportar muitos dos nossos melhores.

Potenciais soluções para o problema são conhecidas:

  1. introduzir em Orçamento do Estado (OE) uma dotação para investigação científica destinada a instituições de ensino superior e investigação, para que custos permanentes tenham uma garantia orçamental permanente, que de momento não têm;
  2. concursos regulares de emprego e de projetos científicos com taxas de sucesso que não fossem risíveis, sobretudo considerando o pesadelo burocrático que implicam;
  3. mecanismos de financiamento e avaliação exigentes, mas distintos, para estruturas que desempenham funções distintas;
  4. maior ligação entre sistemas de investigação e sistemas de produção nas várias áreas;
  5. estratégias para capacitar estruturas nacionais e para criar, incentivar ou atrair indústrias e serviços capazes de aplicar o conhecimento produzido, com consequente criação de mais-valias;
  6. maior simplificação e agilização de processos, o “simplex” prometido que nunca chegou.

A pensar, definir e implementar tudo isto deveria estar a agência-chave para a ciência nacional: a Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT). No entanto, a FCT não tem, nem independência, nem dinheiro, nem sequer um quadro permanente mínimo de funcionários para desempenhar as suas funções. E, sem isso, mais valia extingui-la e começar de novo. Tentar remediar em permanência, e fazer algo de produtivo nestas condições, não é bom para a saúde mental de ninguém, sejam pessoas, instituições ou países; e a atual relação da comunidade científica com a FCT pode caraterizar-se como uma mescla irresolúvel de duvidosa esperança, irritação permanente e síndroma de Estocolmo.

Talvez seja por isso que circulam abundantes mitos urbanos sobre nomes que terão recusado responsabilidades na tutela da Ciência e Ensino Superior; os desafios são muitos, a vontade política pouca. Conhecendo as dificuldades, apenas se pode admirar a dedicação de quem aceita o desafio, pedindo-se trabalho, diálogo, frontalidade, honestidade, decoro. Não tanto que, após a queda de um governo, ganhem uma loquacidade inusitada, quando antes eram conhecidos pelo silêncio e por se furtarem à comunidade.

Também não é muito útil que se produzam afirmações (comprovadamente falsas) no sentido de se ter “resolvido” o problema do emprego científico, ou se garanta haver um compromisso plurianual de 20 milhões para o dito emprego em OE, quando, não só tal se revela uma inverdade, como será até difícil executar esses milhões “dose única” em tempo útil.

Na preparação da candidatura ao programa de emprego científico competitivo, mas permanente, FCT-Tenure (uma iniciativa que se saúda, apesar das suas limitações e equívocos), duas coisas ficaram muito claras, uma óbvia e discutida, a outra menos.

Sendo os números sempre variáveis, a constatação óbvia é que só na Universidade de Coimbra haveria precários em número suficiente para ocupar, pelo menos, metade das 1000 vagas da primeira fase deste programa (estão previstas outras 400 vagas). Extrapole-se ao nível nacional e teremos a dimensão do problema. Que estes precários tenham entre 30 e 60 anos, e carreiras muito variáveis, mostra bem o falhanço de políticas anteriores, outro dado conhecido.

Desde já, seria importante que, após este programa, houvesse um compromisso para um “FCT Tenure” plurianual, com (por exemplo) 140 vagas anuais ao longo de dez anos, ou adiaremos (outra vez) o problema, incluindo nele mais uma geração. Haver previsibilidade nas expetativas é sempre fundamental, para qualquer profissão.

Um outro aspeto, menos discutido, tem que ver com o desequilíbrio entre áreas, o que pode explicar alguma falta de voz comum. Mais uma vez, considerando os dados da minha universidade, os precários acima referidos distribuem-se “grosso modo” pelas Ciências da Vida e da Saúde (40%), Engenharias (22%), Matemática, Física e Química (12%), Humanidades e Ciências Sociais (12%) e Psicologia (6%). Do que ouço de colegas não será muito diferente noutros contextos similares, sobretudo em termos de “liderança”.

Ou seja, uma política científica integrada e racional terá de tentar promover todas as áreas, mas sem fazer de conta que não há especificidades, ou que estes desequilíbrios não existem. Não que as Ciências da Vida e da Saúde devam ser “castigadas” pela sua dinâmica e sucesso (há, entre muitos outros, três grandes projetos europeus “Teaming” a decorrer nestas áreas). Têm é de se pensar em soluções de longo prazo que não passem (só) pela academia, porque nesta área o potencial de criar precariedade futura parece superior, no sentido em que o fenómeno se auto propaga, com investigadores doutorados precários a formarem doutorandos que também o poderão ser.

Um Serviço Nacional de Saúde (SNS) mais forte e inovador deveria também passar por aqui, tal como grandes desígnios nacionais no ambiente, agricultura, sustentabilidade e recursos endógenos (até turismo). Há gente mesmo muito preparada para dar ímpeto a um país, em todas as áreas. Pode é não ser o nosso.

Mas uma outra questão, tão ou mais importante, é não deixar cair áreas fundamentais, só porque não têm tantos precários ou outras estratégias de empregabilidade. Só para dar um exemplo concreto: devido ao descrito acima, na minha universidade há neste momento maior pressão interna para contratar permanentemente 40 biólogos e bioquímicos do que um só filósofo.

Mesmo eu, que sou biólogo e adoro a biologia (e conheço pessoalmente muitos dos precários nessa área), acho isto pouco razoável para o futuro da instituição. É certo que é para este tipo de coisas que servem os decisores, para fazer escolhas estratégicas difíceis em processos que, mesmo que corram bem, correrão mal para uma maioria; e todos farão certamente o melhor possível. Mas, já que não pudemos evitar este estado de coisas, ao menos deveríamos pugnar para que não se repetisse, de modo a ser possível aplicar o conhecimento e as pessoas excelentes que formamos. Nesse sentido é fundamental elevarmo-nos acima das lógicas kafkianas de gestão corrente, do empurrar com a barriga e do tapar buracos; labirintos desgastantes dos quais nunca parecemos capazes de sair.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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