Chama-se ejiao, é um conhecido elixir usado na medicina tradicional chinesa e é fabricado a partir de pele de burro. Depois de ferver as peles, a gelatina que se forma ajuda, supostamente, a preservar a juventude, melhora a qualidade de sono e a fertilidade.
Para satisfazer a procura pelo produto, são mortos todos os anos milhões de burros, estima o mais recente relatório da The Donkey Sanctuary, organização sem fins lucrativos sediada no Reino Unido que luta pela preservação dos burros desde 2017.
O valor foi calculado com base nos 5,9 milhões de peles de burro que foram necessárias para produzir 15700 toneladas de ejiao em 2021, mas se a procura continuar a aumentar — como prevêem —, a quantidade de burros sacrificados poderá chegar aos 6,8 milhões em 2027, lê-se no documento.
Na China, existem quintas destinadas à produção e abate destes animais para a produção da gelatina, mas a associação alerta que há burros a serem importados de África, muitas vezes ilegalmente.
Muitos, incluindo fêmeas grávidas, crias e burros doentes, são transportados a pé durante vários dias, expostos a altas temperaturas e sem alimentação, água ou descanso suficientes. Segundo o relatório, cerca de 20% morre pelo caminho.
Os que sobrevivem são mortos “das formas mais horríveis”. E como não há asnos suficientes para tanta procura, também há quem os roube às comunidades rurais mais pobres que dependem da ajuda destes animais para subsistirem.
Em entrevista ao P3, João Brandão Rodrigues, colaborador do The Donkey Sanctuary e especialista em saúde oral destes animais, adianta que não existem números concretos sobre roubos, mas garante que "são uma das formas mais comuns" de adquirir burros para produzir a gelatina.
"As populações que dependem destes animais tratam-nos da melhor forma que podem, mas não têm um sistema de vedações para os manter seguros durante a noite. De manhã, aparecem burros esfolados em aldeias porque foram roubados nessa noite e é mais fácil abatê-los e tirar a pele do que os levar vivos", explica.
De acordo com o documento, cerca de 600 milhões de pessoas usam burros, que são descritos como “animais sociais e inteligentes”, na agricultura, como meio de transporte ou para conseguirem ter acesso a água e comida. Para muitos, ficar sem eles é a diferença entre viver na “pobreza ou na pobreza extrema”.
"O que gostaríamos de ver é que as empresas de ejiao parassem de importar peles de burro e investissem em alternativas sustentáveis — como a agricultura celular (produção de colagénio em laboratórios). Já existem maneiras seguras e eficazes de fazer isso”, explicou à BBC Janneke Merkx, porta-voz da Donkey Sanctuary.
Segundo o site britânico, os roubos de burros têm sido cada vez mais comuns tanto em África, que tem 35 milhões dos 53 milhões de burros do mundo, como noutros países que precisam destes animais no dia-a-dia, como o Afeganistão, Caraíbas ou Paquistão. Mas é nos países africanos que a situação mais se complica: na falta de burros, são as mulheres e as crianças que ficam responsáveis por transportar a carga.
Enquanto isso, as mulheres chinesas de classe alta, as principais consumidoras de ejiao, usam o produto que está à venda na forma de suplementos, em pó ou para uso culinário.
Um negócio de 7 mil milhões
As peles destes animais são, nos dias de hoje, um comércio que traz milhões à economia chinesa. Segundo a BBC, que cita um investigador, as vendas do mercado de ejiao aumentaram de cerca de 2,1 mil milhões de euros em 2013 para 7,2 mil milhões em 2020.
O tempo de gestação dos burros varia entre 12 e 14 meses e, normalmente, só nasce uma cria. De acordo com o relatório, as populações mais pobres de África ficam sem os cerca de 92 euros mensais que ganham com a ajuda laboral dos animais. Além disto, perdem tempo.
Só as mulheres e raparigas “passam 200 milhões de horas por dia” a carregar baldes de água que os animais carregam, exemplifica o documento da Donkey Sanctuary.
“As empresas, agências e Governos que facilitam o comércio devem tomar medidas urgentes para pôr fim à sua participação. Desde os que autorizam as exportações até às empresas que facilitam involuntariamente o comércio, passando pelos sites que fornecem uma porta de entrada para as peles comercializadas ilegalmente — todos têm de actuar”, lê-se no documento. África e Brasil já o estão a fazer.
Este sábado e domingo, 17 e 18 de Fevereiro, os chefes de Estado de vários países africanos vão reunir-se numa cimeira para discutirem a proibição das exportações destes animais por tempo indeterminado e protegerem a continuidade dos asnos. A aprovação da medida seria, nas palavras de João Brandão Rodrigues, "um marco muito importante contra a luta desta actividade".
A Tanzânia e a Costa do Marfim também já avançaram com a mesma medida em 2022 quando anunciaram a proibição do comércio de peles e o Quénia encerrou todos os matadouros em 2020.
No entanto, nada impede que os burros que vivem nestes países sejam roubados e transportados ilegalmente para países como o Paquistão, que não só permite este comércio como criou, no final de 2023, a “primeira quinta oficial de criação de burros” para a reprodução das melhores raças, escreve a BBC.
No caso do Brasil, está em discussão no Congresso a proibição do abate de todos os burros do país. A par disto, destaca João Brandão Rodrigues, o transporte das peles facilita o tráfico ilegal de outros animais mortos que são levados nos mesmos carregamentos, o que representa riscos para a saúde pública.
"Depois do que aconteceu com a covid estamos cientes de que as doenças se espalham a uma velocidade incrível. Quando qualquer actividade comercial é feita de forma ilegal e não controlada, tudo o que tem que ver com controlo desaparece e estamos a estimular o surgimento de doenças. São animais que são roubados, abatidos em matadouros ilegais sem qualquer tipo de condições. Quando isso falha, a saúde humana é afectada", completa.
Notícia corrigida a 17 de Fevereiro, às 19h10: o volume de negócios da substância na China é de 7,2 mil milhões de euros e não de 7 milhões, como erradamente se lia numa versão anterior