Os avisos da ciência e o problema da vida real

Cada ano batemos novos recordes. Mas o problema é que “há a vida real”, e não podemos parar de emitir, porque isso refletia-se nos preços ao consumidor, e isso é que não pode ser.

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“Conheço e respeito os avisos da ciência – mas o problema é que há a vida real”. Esta é uma frase de Patrick Pouyanné, o CEO da Total Energies, uma das maiores petrolíferas do mundo, para justificar a continuação de investimentos petrolíferos da sua empresa. Mas podia ser uma frase de (quase) toda a gente.

Sim, estamos a encher a atmosfera de gases de efeito de estufa, como milhares de cientistas avisam — todos os anos, de forma cada vez mais desesperada. Estas emissões vão aquecer o planeta 1,5ºC, 2ºC, 3ºC, 4ºC acima da temperatura média da época pré-industrial. Cada ano batemos novos recordes. Mas o problema é que “há a vida real”, e não podemos parar de emitir, porque isso refletia-se nos preços ao consumidor, e isso é que não pode ser.

Sim, a agricultura industrial está a acabar com os ecossistemas, a provocar a extinção de 70% dos polinizadores e cerca de 20% dos pássaros, a esmagar as vidas dos agricultores, e a destruir solos e esvaziar freáticos – mas o problema é que “há a vida real”, e temos de continuar a produzir mais, mais comida, mais carne, mais tudo superintensivo, mais industrial, mais alta tecnologia, etc., apesar desta ser orientada à exportação e desperdiçar 40% da sua produção. Não há certamente alternativa.

Sim,pescámos mais de 90% do peixe graúdo nos oceanos, levando a um literal esvaziamento daquele imenso ecossistema – mas o problema é que “há a vida real”, e a indústria pesqueira não pode parar de produzir, nem de crescer.

Sim, a aviação tem de ser drasticamente reduzida se queremos manter um planeta habitável, a economia do país está amordaçada pelo turismo, com a quantidade de turistas a alimentar um imenso problema de habitação. Mas o problema é “a vida real”, e por isso construa-se um novo aeroporto, porque tem de ser. E nem as maiores organizações ambientalistas (ONGAs) portuguesas contestam isto. Apenas dizem que é mais sustentável construir um novo mega aeroporto em Vendas Novas, em vez de noutro local. Pronto, é um desastre, mas como “tem de ser”, faz-se ali, e assim já está bem. São nove ONGAs portuguesas a seguir a lógica do CEO da petrolífera. Outra vez.

Precisamos de ser mais corajosos e capazes de assumir posições difíceis que emergem da contradição entre ecologia e a perpetuação da lógica petro-industrial. Por isso, a Rede para o Decrescimento opõe-se à construção de qualquer novo aeroporto, exigindo, como é imperioso, a redução gradual do tráfego aéreo, sobretudo no aeroporto de Lisboa que fustiga há anos a população residente.

Sim, “temos de mudar”, “isto vai dar asneira”, “vem aí muita confusão”. Mas “as pessoas não querem”, “ninguém vai mudar nada”, “isso não dá”, ou “é a vida”… Quantas vezes somos confrontadas com este tipo de respostas, em conversas sobre o estado do mundo? A lógica é sempre a mesma, a tal da TINA (There Is No Alternative), partindo de cima e contagiando para baixo, implacavelmente, quer se fale de aeroportos ou de transições.

Olhemos então um sério “problema da vida real”: nunca houve (nem haverá, como se pode ver) nenhuma “transição energética”. Na história da humanidade, as fontes de energia sempre se acumularam, nunca se substituíram. O carvão não substituiu a utilização da madeira (que deve triplicar até 2050), o petróleo não acabou com o carvão (2023 foi o ano com maior produção de carvão na história), o gás não acabou com o petróleo, etc. A única coisa que é certa é que se vai acabar com mais ecossistemas, em busca dos cada vez mais metais e minerais imprescindíveis para “a eletrificação de tudo”.

Continuarmos a acreditar numa transição energética é uma enorme procrastinação coletiva que nos está a roubar tempo, energia e recursos, num perigoso “assobiar para o lado”. E fazêmo-lo porque estamos a confundir causas com sintomas. O aquecimento global é “apenas” um sintoma. A imensa quantidade de plástico nos oceanos e em todos os ecossistemas? Sintoma. Os 230.000 voos por dia a descarregar poluição diretamente na atmosfera, os 180 milhões de hectares de floresta destruídos desde 1990, o desaparecimento de tantas espécies — uma verdadeira extinção em massa, a 6.ª deste planeta —, a morte dos solos, a escassez de água, a poluição em todas as suas vertentes? Todos sintomas que tentamos desesperadamente combater sem ter a coragem de olhar para o âmago do problema: o do crescimento económico exponencial a que as nossas economias estão “obrigadas” (arrastando com elas o resto das estruturas sociais).

O crescimento económico está intimamente ligado ao crescimento da poluição e da degradação ambiental e impede, por definição, uma verdadeira transição. Precisamos, urgentemente, de sair deste novo negacionismo, e de começar a pensar o decrescimento. A redefinir os nossos problemas. A lidar, pessoal e coletivamente, com o desafio de como mantermos vidas confortáveis, abundantes e seguras, num mundo pós-crescimento. Num mundo, num país, onde consumimos menos, quer energética, quer materialmente. Como podemos reinventar a democracia para que não esteja dependente do crescimento do PIB. E a mobilidade, os sistemas agrícolas, de saúde, de educação, da defesa, de turismo, tudo?

Os problemas da “vida real” existem. E nada será conseguido sem os ter em conta. Mas há que os começar a pensar, e resolver, tendo já em conta a necessidade urgente de um novo paradigma. Não mudar nada e esperar que tudo mude, e continuar a construir aeroportos e carros elétricos, a expandir “agroindústrias” superintensivas, a perpetuar a nossa dependência do turismo, ou a acreditar cegamente nos contos de fadas do crescimento verde, é que promete trazer problemas “da vida real” verdadeiramente impossíveis de gerir.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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