Os caracóis dos Açores estão a desaparecer: há quatro espécies “perdidas” e três raras

Os caracóis estão a desaparecer da ilha de Santa Maria, nos Açores, alertam os cientistas. Desde há 20 anos que algumas espécies nunca mais foram vistas — e os culpados “são todos”.

extincao,animais,acores,ambiente,biodiversidade,alteracoes-climaticas,
Fotogaleria
Há espécies de caracóis que estão a desaparecer dos Açores Nuno Ferreira Monteiro
extincao,animais,acores,ambiente,biodiversidade,alteracoes-climaticas,
Fotogaleria
A espécie Leiostyla elegans, uma das que estão em risco nos Açores DR
Ouça este artigo
00:00
06:44

O número de caracóis tem diminuído nos Açores desde há 20 anos para cá, existem espécies que já não se avistam, outras em perigo de extinção e o cenário tem tendência para piorar. As alterações climáticas são um dos factores que contribuem para o problema. É o que diz o artigo “Os caracóis endémicos estão a desaparecer. De quem é a culpa?”, agora divulgado pelo Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA).

O estudo, publicado em Dezembro na revista Açoreana, foi realizado pelo investigador e professor universitário António Frias Martins, pelo meteorologista do IPMA Diamantino Henriques e pelo investigador e especialista em ecologia dos moluscos, Robert Cameron.

O investigador António Frias Martins disse à National Geographic Portugal, no final do ano passado, que estes moluscos poderão ter chegado à ilha de Santa Maria “agarrados a folhas secas sopradas pelo vento, entrelaçados nas penas de aves migratórias ou à boleia de materiais à deriva”. Ao PÚBLICO, o investigador António Frias recorda que "metade das espécies de caracóis que existem nos Açores são espécies endémicas".

O estudo foi desenvolvido na sequência do projecto Life Snails, financiado pela União Europeia. Este projecto “está a actuar numa zona de reserva de Santa Maria no Pico Alto, que é tido como o lugar que concentra mais espécies endémicas só da ilha de Santa Maria”. Aliás, de acordo com o investigador, esta é “a ilha que tem mais espécies endémicas” em comparação com “todas as ilhas dos Açores juntas”, por ser a mais antiga do arquipélago.

O propósito final do projecto “é recriar um habitat primitivo o mais aproximado possível”. Nesse sentido, recorre-se, por exemplo, à monocultura de árvores introduzidas, quer propositadamente ou não, esclarece Frias Martins.​

"Por suspeitarmos de que algumas espécies sistematicamente deixaram de aparecer, fizemos um estudo comparativo das abundâncias nas recolhas realizadas ao longo de cinco décadas. E verificou-se que, a partir de 2000, algumas espécies nunca mais foram encontradas e noutras notou-se um decréscimo terrível de exemplares recolhidos", explicou também António Frias Martins à Lusa.

No artigo científico refere-se que “quatro espécies foram presumivelmente perdidas, pois não foram encontrados exemplares em mais de 20 anos e pelo menos três outras espécies tornaram-se tão raras que se receia que estejam extintas”. Além disso, verifica-se uma tendência para uma diminuição dos caracóis a partir do ano de 1990.

O estudo foi feito a partir da Colecção de Referência do Departamento de Biologia da Universidade dos Açores (DBUAç-MT), que conta com cerca de 50 anos de recolhas de moluscos terrestres. O objectivo foi perceber a causa das alterações na abundância e mesmo na extinção de determinadas espécies endémicas de moluscos da ilha de Santa Maria. “As espécies mais afectadas são as que vivem nas montanhas; as que vivem em altitudes baixas, algumas junto à linha de costa são menos afectadas, bem como as que se encontram desde a linha de costa até à cota mais elevada (Pico Alto)”, notam os autores.

Alterações dramáticas

Para explicar esta diminuição ou extinção dos seres vivos, a investigação focou-se em três principais grupos: alterações climáticas, fragmentação/destruição do habitat e introdução de invasores/predadores. “As alterações climáticas são apenas um dos factores que têm contribuído para uma alteração às vezes dramática da diminuição nas quantidades de populações sobretudo de moluscos”, diz o investigador António Frias Martins. Isto explica-se porque “o aumento da temperatura e, ao mesmo tempo, a rarefacção da porosidade criam condições que são mal recebidas pelos moluscos, sobretudo se durarem um, dois ou três meses”.

Ainda assim, o professor ressalva que as alterações climáticas não são, como fica explícito no estudo, o único factor que “influencia a vida destes pequenos seres”. “Se a esta causa juntarmos os efeitos produzidos pela acção humana, se houver fragmentação do habitat ou destruição das condições melhores para o desenvolvimento destas espécies, então esta junção tem uma força multiplicativa na rarefacção e desaparecimento das espécies”, explica.

Foto
As alterações climáticas têm impacto na extinção dos moluscos, confirma o estudo Nuno Ferreira Monteiro

O estudo sugere que “o factor mais facilmente perceptível e mais facilmente medido das alterações climáticas é o aumento da temperatura”. Ao mesmo tempo, aponta outros factores responsáveis pela situação do desaparecimento dos caracóis, “nomeadamente a precipitação e a humidade relativa, que influenciam o ambiente e o habitat a que os moluscos estão adaptados”.

Os investigadores reforçam que a diminuição e a extinção se devem à “confluência de muitos factores”. Ainda assim, “a tendência verificada para as endémicas de Santa Maria, num ambiente fortemente influenciado pelos humanos, foi detectada em ambientes prismáticos, livres de influência humana directa”.

Mas o papel humano não deixa de ter importância, pelo contrário. António Frias Martins afirma que é preciso notar que “a extinção das espécies, sobretudo as que raramente se vêem ou que não se vêem, avisa-nos de que algo está mal”. Assim, a nossa reacção a este aviso não deve ser “apenas para defender as espécies”, mas também para “nos pôr em guarda e para nos retrairmos das acções que levam a que este efeito se faça sentir com mais equidade”.

É atribuída quota-parte da responsabilidade aos predadores dos moluscos que fazem parte da fauna açoriana, sendo que há “uma nova e maior ameaça” que vem da América do Sul, foi registada pela primeira vez no Pico Alto e denominada por Obama nungara, (espécie de planária terrestre de 10 centímetros de comprimento, um tipo de verme achatado) de acordo com autores referenciados no estudo.

“Aceleração da extinção”

Com a situação a agudizar-se, os investigadores admitem no relatório temer “uma aceleração da extinção”, uma vez que a situação se tem tornado mais preocupante devido à “redução drástica das populações de moluscos”.

O professor universitário e investigador Frias Martins explica “a sensibilidade destas espécies endémicas às alterações climáticas” pelo facto de “terem evoluído neste lugar [ilha de Santa Maria], estando muito adaptadas ao seu próprio nicho ecológico”. Se este “nicho ecológico” for alterado, as espécies “ficam sem defesas genéticas”.

A resposta à pergunta de partida “de quem é a culpa?” não é concreta, por não existir “um único culpado”. “Mais óbvia é a noção de que todos o são”, alerta a investigação. Para tentar solucionar este problema, o estudo explica que, apesar de as “alterações climáticas não poderem ser mitigadas num ano ou numa década”, “podem ser tentados esforços de mitigação para dar uma oportunidade aos sobreviventes”.

Relativamente à investigação, o que mais surpreendeu "e dói mais" a António Frias Martins é “algumas espécies que via nos anos 70 ou 80 terem deixado de existir”.

No ensaio, são enumeradas acções que podem ter um impacto positivo para tentar solucionar a extinção dos caracóis. Reduzir a fragmentação do habitat em áreas históricas de distribuição das espécies endémicas, aumentar a adequação e qualidade do habitat, repovoar áreas invadidas e a sensibilização do público são alguns dos caminhos a trilhar. “Resta-nos desejar-lhes sorte, a bem do nosso património natural”, concluem os autores do artigo.

Texto editado por Claudia Carvalho Silva