Sobre a solidão
Naquele dia, a solidão da Ana foi interrompida pelo toque do telefone. Voltaria, mas entretanto tinha havido uma trégua.
Chovia. A cama ficava encostada à parede, com uma mesinha-de-cabeceira ao lado, onde um pequeno candeeiro de plástico que parecia um cogumelo, base branca, abajur redondo e vermelho, iluminava as noites e os dias escuros; aos pés da cama havia um tapete e ao lado, outro. A Ana tremia de frio quando se levantou da cama, embrulhada num cobertor, para se dirigir ao quarto da mãe. Estou doente, disse. A São pôs-lhe a mão na testa — era um dos poucos contactos físicos que ainda aconteciam, neste caso, graças à doença — e depois um supositório. Mandou-a deitar-se, obviamente não iria à escola, disse-lhe a mãe, preparando-lhe depois um chá e também um xarope de cenoura, pois a filha estava com tosse. Apesar da situação, a São decidiu ir trabalhar, deixando a Ana sozinha em casa. Mal a mãe saiu, a Ana levantou-se, novamente embrulhada no cobertor, para ligar à Alexandra: tinha saudades. Encontrou no disco do telefone um cadeado que não a deixava marcar nenhum número, podia apenas receber chamadas. A Ana sentia-se cada vez mais só. A São, também. Eram duas solidões a viver na mesma casa. Pelo facto de não existir materialmente, por ser uma ausência, a solidão é um predador extremamente eficaz. Não é um tigre prestes a saltar. É um tigre que não está em lugar nenhum e em todos os lugares ao mesmo tempo. Se a solidão se visse, se a identificássemos como se faz aos bandidos na esquadra, se a pudéssemos reconhecer pelo nariz ou pela cor dos olhos, se ela tivesse garras, então poderíamos derrotá-la, com mais ou menos dificuldade, podíamos lutar, tentar agarrar-lhe os braços, atirá-la ao chão. Mas a solidão não se deixa tocar. A um amigo, a um familiar, sim, à sua ausência não. Esta falta de algo é tão perigosa quanto uma coisa material, a não existência física é tão mortal quanto uma arma. Tal como a fome é ausência de comida, e mata, também a solidão é capaz de ser igualmente letal. Naquele dia, a solidão da Ana foi interrompida pelo toque do telefone. Voltaria, mas entretanto tinha havido uma trégua encarnada na voz da Alexandra. Esta interrupção da solidão repetir-se-ia diariamente, mas sem solucionar o problema.
O contributo do PÚBLICO para a vida democrática e cívica do país reside na força da relação que estabelece com os seus leitores.Para continuar a ler este artigo assine o PÚBLICO.Ligue - nos através do 808 200 095 ou envie-nos um email para assinaturas.online@publico.pt.