As algemas pesadas da justiça
Haver diferenças entre MP e juiz de instrução é normal. O que não é normal é os cidadãos ficarem cada vez mais com a percepção de que o MP trabalha para o espectáculo e o justicialismo.
O ex-presidente da Câmara do Funchal Pedro Calado e os empresários Avelino Farinha e Custódio Correia estavam detidos desde dia 24 de Janeiro, depois de terem sido constituídos arguidos por suspeitas de corrupção. Ao fim de 22 dias, o juiz de instrução criminal decidiu finalmente as medidas de coacção aplicáveis e é certo dizer-se que, ao fim de 22 dias, qualquer decisão que fosse tomada seria criticável. Foram três semanas que permaneceram nas instalações da Polícia Judiciária, tendo sido sempre transportados para o tribunal com algemas.
Ao fim de 22 dias, o juiz de instrução criminal concluiu não ter encontrado quaisquer indícios da prática de crimes. Ex-autarca e empresários continuam arguidos e têm apenas a obrigação de Termo de Identidade e Residência, a mais leve medida de coacção.
O que já era estranho e até preocupante aos olhos do cidadão comum (três semanas de detenção) transformou-se num caso insólito.
Pedro Calado, que entretanto se demitiu da presidência da Câmara do Funchal, tinha sido constituído arguido em Janeiro com as suspeitas de sete crimes de corrupção passiva e vários alegados ilícitos criminais de prevaricação, recebimento ou oferta indevidos de vantagem, participação económica em negócio, abuso de poderes e tráfico de influência. Agora, o juiz de instrução criminal diz não vislumbrar a prática de qualquer destes crimes. O mesmo com os empresários Avelino Farinha e Custódio Correia.
Como sublinharam os advogados dos arguidos nesta quarta-feira, é verdade que a justiça funciona, e aí está a prova: o Ministério Público pede as medidas de coacção e o juiz tem a última palavra. Tudo isso é verdade, mas não pode apagar ou fazer esquecer a demora inaceitável em os detidos serem presentes ao juiz (só o foram quase ao fim de uma semana), os meios inusitados utilizados nas buscas (centenas de inspectores da PJ a bordo de um avião militar) ou a frase taxativa do juiz de que não há indícios de crime (completamente nos antípodas daquilo em que o MP insiste).
Este caso tem decorrido de tal modo que motivou uma reacção inédita de ex-procuradores-gerais da República, caso de Souto Moura e Cunha Rodrigues, que vieram a público, em declarações à Renascença, pedir explicações a Lucília Gago sobre a necessidade do aparato de meios que viajaram de Lisboa para a Madeira, bem como o facto de ter havido fugas de informação para a comunicação social ainda antes de a operação ter sido desencadeada no Funchal. Como tem sido hábito, nada convenceu Lucília Gago a falar. Pelo contrário, pelo meio, até impediu procuradores de participarem numa conferência sobre megaprocessos numa espécie de nova lei da rolha.
Haver diferenças entre MP e juiz de instrução é normal. O que não é normal é os cidadãos ficarem cada vez mais, e com razão, com a percepção de que o MP é aventureiro e trabalha para o espectáculo e o justicialismo.