Manuel Liñán é a bailarina de flamenco que sempre quis ser
Um espectáculo tradicional de flamenco em que o papel habitualmente nos corpos de mulheres é tomado pelos homens da Compañia Manuel Liñán. ¡Viva!, sexta-feira e sábado no CCB
Quando estava no estúdio a criar ¡Viva!, o espectáculo de flamenco que sexta-feira e sábado apresenta no Centro Cultural de Belém, Lisboa, Manuel Liñán não pôde deixar de sentir que estava a abrir uma porta. Não apenas no sentido em que, trajando bailarinos homens com roupas de mulher, dava um passo enorme no questionamento das mais arreigadas tradições da dança nascida na Andaluzia, mas também, com um lastro mais pessoal, abria a porta do quarto da criança que fora.
A criança que começara a dançar e, consciente do interdito em que incorria, se refugiava num quarto, vestia uma saia que muito rodava no ar e enfiava umas calças de fato de treino na cabeça para simular longos cabelos que rodopiavam também. Como a porta do quarto não tinha trinco, criava uma barreira com um monte de livros que lhe ofereciam a possibilidade de, por alguns minutos, aproximar-se de quem sonhava ser. “Tinha de ser ali, escondido da sociedade”, lembra ao PÚBLICO. “Mas, ao menos, sabia quem era.”
Manuel Liñán começou a dançar aos cinco anos e é claro na sua memória aquilo que primeiro o cativou: “A imagem que me atraiu no flamenco era a de uma mulher, com um vestido longo, umas mãos grandes, e sobretudo a silhueta do vestido dando voltas.” Foi quando disse ao espelho que queria dançar. E foi o que fez, primeiro como um jogo, como uma brincadeira, mas que se foi instalando no seu corpo à medida que se tornava adulto e percebia o quanto “a paixão e o desejo” daquela dança batia certo com tudo aquilo que sentia como “uma linguagem interna”. “Um dia, ao dançar, dei-me conta que o flamenco me permitia expressar tudo aquilo que não sabia dizer e não podia expressar com palavras”, conta. Tinha então “12 ou 13 anos”.
Olhando para trás, Manuel Liñán acredita que ¡Viva!, estreado em 2019, quando Liñán contava já 39 anos, é o espectáculo que adoraria ter sido a sua estreia e “ter feito aos 12”. Porque todo o árduo caminho que foi trilhando até aqui, feito de pequenas conquistas, deixando primeiro Granada rumo a Madrid, começando “a deixar de usar calças altas, a colocar um colete com franjas, a ser apontado por causa disso, a rodar a mão um pouco mais, a ser criticado por causa disso, a vestir uma camisa com brilho e até, finalmente, dançar com uma bata de cola [uma saia com folhos e cauda, típica do flamenco], e causar escândalo por cauda disso”, tudo o aproximava do seu sonho de infância: “Transformar-me numa bailarina”.
O principal obstáculo de todo esse trajecto, confessa ao PÚBLICO, prende-se com a tendência para se começar “a normalizar as dificuldades e a acreditar que, se queremos ser aceites pela sociedade, temos de seguir a sociedade”. “Tive de fazer mesmo isso, em todos os aspectos – familiar, social e artístico. Porque só recebia aprovação no flamenco se dançasse ‘como devia’. Foi uma espécie de exame por que tive de passar. E na vida familiar o mesmo, porque o meu pai é toureiro e eu tinha de cumprir com um papel de super-homem.” Até que, de tanto se silenciar, a rolha acabou por saltar. Foi então que começou, aos poucos, a dançar como queria e a libertar-se da ameaça paterna que lhe prometia “Quando te vir com um brinco, vais ver”. Ao fim de seis anos a ouvir essa frase do pai, Manuel deixou-o a falar sozinho. “E quando saí de casa, pus logo dois brincos, bem grandes”, ri-se.
Sem dramaturgia
O escândalo quando Manuel Liñán começou a dançar de bata de cola e xaile partia de uma incapacidade de compreender. “As pessoas não entendiam que eu não era uma personagem”, explica. “E como não havia nenhuma dramaturgia, isso incomodou muito.” Porque, durante algum tempo, a expectativa era de que fosse uma originalidade de um dia só, um propósito de chocar que se cumpriria num par de vezes, uma opção que se esgotaria quando o espectáculo em que estivesse a trabalhar terminasse. “Por isso, as pessoas ainda se incomodaram mais quando continuei. Porque aquilo não era uma decisão de um só dia, era uma decisão que iria fazer parte da minha vida e dos espectáculos seguintes. Não havia qualquer justificação que não esta: era assim que queria vestir-me e ia continuar a fazê-lo. Foram muitos anos para chegar aqui, foram passos pequenos e firmes, em que me apontaram muito o dedo, mas segui esse impulso natural.”
Daí que, nessa liberdade festiva que é ¡Viva!, Liñán tenha escolhido partilhar o palco com bailarinos com percursos semelhantes ao seu (Manuel Betanzos e Miguel Heredia), histórias um pouco menos drásticas (Jonatán Miro) e bailarinos de uma outra geração que não viveram os mesmos conflitos (Yoel Vargas e José Capel). Mas aquilo que em palco se verá é um espectáculo de flamenco tradicional, com todas as danças habituais. Com o pormenor de que os vestidos e os gestos, aqui, assentam em corpos masculinos. Porque assim o querem.