Ursos-polares correm risco de morrer de fome no Árctico com menos gelo

Ursos-polares têm maior risco de morrer de fome à medida que aumentam os períodos sem gelo no Árctico, sugere estudo. Sem poder caçar focas, são obrigados a deambular à procura de comida em terra.

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Urso polar em terra na baía de Hudson, no Canadá David McGeachy/DR
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Os ursos-polares correm um risco maior de morrer de fome à medida que, devido à crise climática, o gelo marinho diminui no Árctico, indica um estudo publicado na terça-feira na revista científica Nature Communications.

Obrigada a passar mais tempo fora do gelo, sem acesso à sua dieta favorita – a carne de foca, que é bastante calórica –, a espécie Ursus maritimus acaba por gastar mais energia deambulando à procura de outro tipo de alimentação, que acaba por não suprir as suas necessidades.

Apesar do esforço de adaptação, as calorias que obtêm em terra podem não ser suficientes para sobreviverem no futuro. Na impossibilidade de caçar focas-aneladas (Pusa hispida) e focas-barbudas (Erignatus barbatus), os ursos consomem frutos silvestres, vegetação rasteira, pássaros e carcaças.

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Ursos polares estão a passar cada vez mais tempo fora do gelo devido à crise climática David McGeachy/DR

“O nosso trabalho mostra que, embora os ursos-polares exibam uma plasticidade notável no comportamento, eles continuam em risco de morrer de fome devido ao declínio previsto do gelo marinho do Árctico, que está associado a períodos mais longos de Verão em terra”, explicou ao PÚBLICO o biólogo Anthony Pagano, primeiro autor do estudo e investigador no Serviço de Investigação Geológica dos Estados Unidos (EUA).

A energia que os ursos-polares gastam à procura de comida, comparada com as calorias que são capazes de obter, indica que o futuro do Ursus maritimus no Árctico pode ser cada vez mais difícil. Quanto menor o período e a extensão de gelo no futuro, maior será o risco de insegurança alimentar para a espécie.

“Nos últimos anos, tem havido uma discussão sobre se os alimentos terrestres poderiam beneficiar os ursos-polares para compensar o aumento do período em terra e a redução do acesso às suas presas primárias (focas-aneladas e focas-barbudas). As nossas descobertas mostram que os alimentos terrestres são inadequados para prolongar o período de sobrevivência dos ursos-polares em terra. Os dados que recolhemos podem ser usados para analisar o impacto sobre as espécies dos aumentos estimados do uso da terra no Verão”, acrescenta Anthony Pagano, numa resposta por email.

Coleiras com câmaras e GPS

Os cientistas acompanharam 20 ursos-polares durante três semanas, durante três Verões seguidos (de 2019 a 2022) na região oeste da baía de Hudson, em Manitoba, no Canadá. O objectivo era observar como a espécie se adapta à paisagem em termos de actividade e procura alimentar, de forma a quantificar o gasto diário de energia.

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Cientistas recorreram a coleiras com câmaras e GPS para acompanhar a actividade de 20 ursos Joy Erlenbach/DR

Esta análise detalhada foi possível graças à utilização de diferentes dispositivos, incluindo pequenas câmaras e instrumentos de geolocalização, que foram colocados à volta do pescoço dos ursos. Sem estas coleiras tecnológicas, não teria sido possível compreender melhor a energia gasta em deambulações, nem as mudanças alimentares.

“Esta tecnologia está a revolucionar o nosso conhecimento acerca dos comportamentos animais, uso de habitat, movimentos e dieta, mas há também limitações, como a autonomia das baterias e a capacidade de armazenamento da memória. Só conseguimos gravar vídeos de cinco segundos a cada dois minutos, o que forneceu instantâneos do comportamento do urso, mas não forneceu uma imagem completa do seu comportamento diário”, explica o biólogo.

Para ultrapassar esta limitação, os cientistas recorreram a dados de acelerómetros triaxiais. Estes dispositivos, que medem as vibrações em três eixos ortogonais ( X, Y e Z), também foram incorporados nas coleiras, permitindo um acompanhamento constante da actividade dos 20 ursos-polares.

“Até onde sabemos, este é a maior amostra alguma vez conseguida em estudos com estes grandes mamíferos. Considerações financeiras e logísticas e outras determinaram a nossa decisão de trabalhar com apenas 20 indivíduos. Eles foram seleccionados aleatoriamente e devem representar um reflexo dos comportamentos, da dieta e das necessidades energéticas dos ursos-polares na população”, esclarece Pagano.

Perdem entre oito e 36 quilos no Verão

Os diferentes indivíduos apresentaram estratégias diferentes para conservar energia, incluindo o descanso e o consumo de alimentos terrestres. Mas todos perderam peso demasiado depressa: um quilo por dia em média. Independentemente da dieta adoptada ou da estratégia energética, 19 dos 20 ursos-polares observados perderam entre oito e 36 quilos ao longo das três semanas anuais de observação.

“Nenhuma das estratégias vai permitir que os ursos-polares sobrevivam em terra além de um determinado período de tempo. Mesmo os ursos que estavam em busca de alimento perderam peso corporal na mesma proporção que aqueles que descansaram”, disse o co-autor Charles Robbins, director de um centro dedicado aos ursos na Universidade de Washington, nos EUA.

Ao contrário dos ursos-pardos, que conseguiram adaptar-se à redução do gelo recorrendo à hibernação e aos alimentos terrestres, os ursos-brancos precisam de um maior número de calorias e podem não resistir a estações mais longas em terra. Este estudo mostra que tentaram as duas abordagens dos ursos-pardos – mas sem grande sucesso.

“Os ursos-polares não são ursos-pardos que usam batas brancas. Eles são muito, muito diferentes”, conclui Charles Robbins, citado numa nota de imprensa.

Um estudo anterior, publicado em 2018 na revista Science, no qual Anthony Pagano também esteve envolvido, mostrava precisamente que o metabolismo dos ursos-polares é mais exigente do que se pensava. O trabalho destacava que, para fazer face às necessidades energéticas, estes animais precisam de grandes quantidades de alimentos.

A carne de foca, por ser gordurosa e calórica, responde perfeitamente às necessidades da espécie – mas, com decréscimo do gelo, a caça desta presa torna-se cada vez mais difícil. “Encontrámos um modo de vida de famintos – se não encontram focas, isso terá um efeito bastante dramático”, alertou na ocasião Anthony Pagano.

Embora os ursos-polares costumem ficar mais quietinhos para poupar energia durante as semanas de degelo, num modo semelhante à hibernação, a espécie tem mostrado grande capacidade de adaptação à medida que as alterações climáticas deixam as áreas geladas menos extensas e espessas. Muitos estiveram bastante activos durante o período em que foram observados – e isso surpreendeu os cientistas.

“A maioria dos ursos estava mais activa do que esperávamos e foi fascinante observar o seu comportamento nesta paisagem: interagindo com outros ursos, procurando recursos alimentares, controlando insectos. Três dos ursos nadaram muito tempo, algo que não esperávamos, dois dos quais encontraram mamíferos marinhos durante a natação, mas não os conseguiram comer, enquanto nadavam”, afirma Anthony Pagano.

Os autores também não imaginavam encontrar a variedade no comportamento e no gasto energético que observaram no terreno. “Como biólogos, pensamos frequentemente na vida selvagem respondendo às condições ambientais numa perspectiva óptima. O que descobrimos é que o comportamento dos ursos-polares em terra, pelo menos nesta região, não era necessariamente determinado pela sua condição corporal, sexo ou grupo etário, mas parecia ser motivado por uma adaptação individual”, refere o investigador.

O estudo agora publicado pode ajudar os especialistas, sobretudo aqueles que se dedicam à conservação do Ursus maritimus, a compreender melhor as dificuldades que estes predadores podem enfrentar à medida que a crise climática faz com que os períodos sem gelo se tornem mais longos. O período sem gelo na baía de Hudson aumentou três semanas entre 1979 e 2015, o que significa que, na última década, os ursos-polares estiveram fora do gelo aproximadamente 130 dias.