Leis para resolver o “elefante de plástico” da gestão de resíduos à espera de decisão de Marcelo

Regime geral de resíduos, responsabilidade do produtor, regime de aterros: depois de chumbar diploma sobre gestão de resíduos perigosos, Marcelo tem de se pronunciar sobre megapacote sobre lixo.

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O Governo aprovou no início de Dezembro o decreto-lei que altera os regimes da gestão de resíduos José Sena Goulão/LUSA
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Portugal já não tem tempo a perder em matéria de gestão de resíduos. Na quarta-feira, a Comissão Europeia anunciou mais um procedimento de infracção ao país, desta vez por não ter transposto correctamente a Directiva-Quadro Resíduos, que exige que os Estados-membros melhorem os sistemas de gestão de resíduos e estabelece objectivos para a reciclagem. Portugal está em falta, entre outros pontos, na transposição correcta das disposições relativas ao estatuto de “fim de resíduos”, em alguns aspectos dos requisitos para os regimes de responsabilidade alargada do produtor e na metodologia de medição dos níveis de resíduos alimentares.

Não é caso raro na UE, mas Portugal está constantemente a ser chamado à atenção nesta matéria: foram abertos quatro procedimentos em 2023, seis em 2022 e 17 em 2020. Actualmente, o país tem quatro infracções abertas pela Comissão Europeia: uma por má aplicação da Directiva Aterros e da Directiva-Quadro Resíduos, duas por não ter transposto a directiva sobre isenções aplicáveis à utilização de chumbo e de crómio hexavalente em determinados casos, e agora pela transposição incorrecta da revisão de 2018 da Directiva-Quadro Resíduos.

O Governo aprovou no início de Dezembro o decreto-lei que altera os regimes da gestão de resíduos (RGGR), de deposição de resíduos em aterro e da chamada gestão de fluxos específicos de resíduos sujeitos ao princípio da responsabilidade alargada do produtor. Mas o diploma está na secretária do Presidente da República desde o início de Janeiro, à espera de promulgação.

É um elefante muito grande – de plástico – faz barulho quando mexe, mas toda a gente fecha os ouvidos”, resume Rui Berkemeier, da associação ambientalista Zero, em tom de brincadeira. E entretanto, apesar de ligeiras melhorias, Portugal continua a produzir mais resíduos urbanos do que deveria: 513 kg per capita em 2021, de acordo com dados da Agência Portuguesa do Ambiente (APA), quando o objectivo era não ultrapassar 410 kg per capita por ano.

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Gerir e tratar resíduos não é barato, dizem especialistas ADRIANO MIRANDA

Sistema de Depósito e Reembolso

Entre as novas disposições do Regime Unificado dos Fluxos Específicos de Resíduos (​Unilex) está o muito aguardado Sistema de Depósito e Reembolso (SDR), que vai obrigar quem vende embalagens de plástico e metal a ter um sistema de retorno das mesmas, devolvendo ao consumidor um valor pela embalagem.

Legislado em 2018 e posto à experiência em 2021 em alguns estabelecimentos, este sistema deveria ter sido regulado em 2022, mas, até agora, nada... “Se esta legislação não avançar, o SRD vai atrasar mais um ano, desperdiçando dinheiro do PRR para este sistema. O Presidente da República tem de ser rápido, estão em causa dinheiros comunitários”, alerta Rui Berkemeier.

No desenho posto em consulta pelo Governo à Comissão de Acompanhamento da Gestão de Resíduos (Cager), as autarquias deveriam apoiar esse sistema. Tendo em conta que o “ecovalor poderá vir a incluir os custos da limpeza urbana nos custos das embalagens”, o SDR vem também dar uma ajuda para evitar que as embalagens fiquem na via pública.

Valores de contrapartida

Enquanto os diplomas não são promulgados, continuam também por actualizar – em alguns casos, para o dobro – os valores de contrapartida pagos aos municípios pela recolha selectiva e triagem de embalagens para reciclagem.

Estes valores, de acordo com a lei, deveriam pagar a recolha e o tratamento destes resíduos, mas “sistematicamente não é pago às autarquias o valor certo pelo trabalho que é feito”, afirma Rui Berkemeier, que recorda dados da Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos (ERSAR) sobre o défice dos municípios.

Em 2021, a ERSAR alertou para os “desequilíbrios financeiros na gestão da recolha selectiva e da triagem de embalagens e resíduos de embalagens”. O prejuízo com a recolha selectiva e triagem das 11 empresas multimunicipais do grupo EGF, que trata do lixo de 174 municípios (equivalente a 60% do território continental), rondava 20 milhões de euros em 2019. Seriam 35 milhões de euros no total dos sistemas de resíduos urbanos do país, diz o ambientalista.

“Gerir e tratar resíduos não é barato”, nota Marta Neves, da EGF, acrescentando que os custos têm aumentado à medida que crescem as exigências nesta matéria – e isto é uma realidade com que todos os países da UE estão a debater-se.

“É o munícipe que está a pagar”

Em Portugal, os valores de contrapartida não sofriam qualquer alteração desde 2016, tendo visto “um pequeno ajuste à taxa de inflação” no último trimestre de 2023. “Neste momento, quem paga hoje este valor somos todos nós”, resume Marta Neves, referindo-se à taxa municipal. “Como é o município quem está a suportar o valor na tarifa, é o munícipe que está a pagar. A taxa de resíduos, pago-a sempre, independentemente do que consumo”, nota ainda a administradora.

Enquanto isso, sem actualizações que permitam novos investimentos, “ninguém avança com medidas de melhoria, como os sistemas porta a porta”, lamenta Berkemeier, referindo-se a uma estratégia que vários estudos indicam ser mais eficaz do que a instalação de mais ecopontos.

Reconhecendo a pressão financeira sobre os municípios, Pedro Nazareth, CEO da Electrão, alerta que esse “reforço de 100% dos valores de contrapartida dos municípios” terá um impacto enorme, chegando a “duplicar e triplicar os orçamentos”. “Não sei se alguém fez as contas do impacto da proposta, se alguém se preocupou em criar um caminho”, lamenta o administrador da entidade gestora que actua na reciclagem de baterias, resíduos eléctricos e electrónicos e embalagens.

Ecovalores pagos pelo poluidor-pagador

Quem deve pagar, então? Aplicando o princípio do poluidor-pagador, o entendimento cada vez mais consensual na União Europeia é que a responsabilidade seja transferida para as empresas que colocam embalagens no mercado.

Actualmente, já é aplicado o princípio da responsabilidade alargada do produtor através da cobrança de ecovalores, pagos pelas empresas produtoras às entidades gestoras com licenças para os diversos fluxos de resíduos (que, por sua vez, pagam os valores de contrapartida às autarquias e sistemas de gestão de Resíduos Urbanos). Só que, neste momento, “o ecovalor, a prestação financeira que empresas pagam às entidades gestoras, cobre o que acontece, não cobre o que gostávamos que acontecesse”, nota Pedro Nazareth, da Electrão.

Já se espera um aumento dos ecovalores, mas não se sabe ao certo como e quanto. Uma das incógnitas da actualização dos diplomas é se haverá uma “oneração para embalagens não recicláveis”, acrescenta ainda Marta Neves, da EGF. “Os embaladores que colocam embalagens não-recicláveis devem ter um ecovalor superior”, defende.

“Ecodesign”

Alguns intervenientes no sector, como a Sociedade Ponto Verde, têm alertado para que os consumidores vão pagar mais por causa destes aumentos. Mas Rui Berkemeier recorda que “já estamos a pagar”: “Todos os munícipes, em vez de apenas os consumidores que compram e descartam estes materiais”, nota. “Os 23 sistemas em alta [multimunicipais] têm estado, na prática, a financiar a responsabilidade alargada do produtor”, complementa Marta Neves.

Uma maior cobrança destes ecovalores poderá, aliás, incentivar a inovação ao nível de embalamento de produtos, encontrando novos materiais ou soluções reutilizáveis, para que as empresas não percam competitividade devido ao recurso a embalagens pouco sustentáveis.

Aliás, ao nível europeu, o chamado “ecodesign” será em breve a regra, estando actualmente a ser analisadas novas normas para obrigar a que apenas estejam no mercado embalagens cuja circularidade esteja garantida.

Licenças

Enquanto o sector aguarda pela promulgação dos diplomas, fica também por arrancar o novo ciclo de licenças de entidades gestoras (EG) de todos os fluxos específicos de resíduos: embalagens e resíduos de embalagens, equipamentos eléctricos e electrónicos, pilhas e acumuladores, óleos, pneus e ainda veículos em fim de vida. No final do ano passado, as entidades tiveram uma prorrogação das actuais licenças por mais seis meses, de forma a esperar pela aprovação das actualizações do RGGR e do Unilex.

Esta nova geração de licenças deve trazer novas obrigações de cumprimento das metas ambientais. Para as entidades gestoras, a incerteza sobre os novos critérios dificulta a previsão do investimento necessário e a preparação para os concursos para a actividade dos sistemas de reciclagem para os próximos dez anos. “Têm de saber com que linhas é que se cosem”, alerta Rui Berkemeier.

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Só que, lamenta Pedro Nazareth, administrador da Electrão, “deixou-se tudo um pouco embrulhado para a última”, tendo sido feita a consulta sobre o Unilex em Outubro e do já RGGR só em Novembro, poucos dias antes da aprovação em Conselho de Ministros.

Sobre o Unilex, diz, tem “alguma expectativa” de que as propostas tenham sido acolhidas. Já sobre o RGGR, onde identificou “propostas muito disruptivas”, considera “muito difícil ter havido reversão de algumas propostas porque não houve tempo”. “Nas versões que nos foram propostas, somos contra a sua aprovação”, conclui.

Há ainda a questão da taxa de gestão de resíduos (TGR), para a qual também se prevê um aumento expressivo – aplaudido por entidades como a Zero, temido pelos agentes do sector. A TGR paga pelas entidades gestoras é calculada tendo como valor de referência a taxa de envio de resíduos para aterro – actualmente, são cerca de nove euros por tonelada, um valor que pode mais do que duplicar.

Na proposta para o RGGR que o sector foi convidado a comentar, o aumento da TGR poderia multiplicar os encargos das entidades incumpridoras (o sector dos resíduos eléctricos e electrónicos, onde a Electrão é o principal interveniente, não chega a 15% de cumprimento das metas). As entidades gestoras queixam-se, contudo, de serem penalizadas por resultados que não controlam, tendo em conta que os municípios têm o exclusivo da recolha e triagem de resíduos. “Ninguém gosta de não cumprir metas”, recorda Pedro Nazareth, notando a falta de autonomia das entidades gestoras.

Incógnitas

Rui Berkemeier, da Zero, não doura a pílula: a proposta do RGGR ainda tem insuficiências do ponto de vista ambiental, mas, reforça, “tem é que sair”. Reconhecendo que não é uma legislação perfeita, diz que “estes diplomas são mais positivos do que negativos”.

Já Marta Neves, administradora executiva da EGF, começa por dizer que “são várias expectativas”, mas “não conhecemos o documento final”. O que se espera, contudo, “é uma alteração significativa no sector”, com alguns temas “particularmente impactantes” para os municípios e entidades como a EGF, como a actualização dos valores de contrapartida pagos aos municípios, que há muitos anos investem mais do que recebem. “Mas diria que é uma alteração justa”, reforça a administradora. “Temos de caminhar cada vez mais para este âmbito...”

A secretária-geral da Associação para a Gestão de Resíduos Urbanos (ESGRA), Carla Velez, lamenta esta “situação de arrastamento”, que acaba “sempre por penalizar o ímpeto que Portugal precisa para cumprir as metas”. “A versão que conhecemos era uma nova metodologia de cálculo e que nos pareceu muito mais adequada à realidade, tendo em conta exigências de eficiência”, nota. Esta nova metodologia “tem impacto nos produtores, nas entidades gestoras, na cadeia de valor”, reconhece, mas “tem de ser toda ela actualizada de acordo com a realidade”.

“Temos um problema grave”, alerta, com a deposição em aterro “de mais de 50% dos resíduos que produzimos”.

56% depositados em aterros

Actualmente, 56% dos resíduos urbanos acabam em aterros, quando a meta é não depositar mais de 10% do lixo doméstico até 2035. No horizonte, há ainda o desafio de pôr no terreno a recolha de biorresíduos, que se tornou obrigatória desde o início do ano.

Somando a realidade “muito assimétrica” do país ao “lugar menos privilegiado em termos de investimento”, avisa Carla Velez, “é só fazer a extrapolação” para encontrar rapidamente problemas de falta de recursos e investimento necessário para “ajustar o alinhamento com as metas comunitárias”.

São precisas, portanto, decisões urgentes para gerir os resíduos “de forma segura e sustentável”, nota Carla Velez. “É só imaginar como seria a nossa vida se não houvesse recolha e tratamento de resíduos no Natal, quando há tolerância de ponto.” Ou neste Carnaval.

Notícia corrigida às 14:10. Os resíduos não são depositados em aterro “sem qualquer tratamento”, como estava escrito, com base numa informação errada da Comissão Europeia.