Amazónia pode atingir um ponto de não retorno já em 2050, deixando toda a floresta em risco

Estudo na revista Nature analisou os vários factores que ameaçam a Amazónia. Em 26 anos, entre 10% e 47% da floresta estão em risco de se degradar o que pode pôr em risco todo o bioma.

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A Amazónia peruana vista a partir de um drone Andre Dib
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O aumento da temperatura média, os fenómenos extremos de seca, a diminuição de precipitação, a construção de estradas, a desflorestação e os incêndios são fenómenos que se interconectam na contínua degradação da floresta da Amazónia. Um novo estudo olhou para o horizonte de 2050 para perceber que impacto conjunto é que aqueles fenómenos iriam ter ao longo daquele vastíssimo território e estimaram que, se nada for feito, entre 10% e 47% da sua área estaria em risco de se degradar, atingindo um ponto de não retorno.

Essa transformação pode ser suficiente para pôr em risco toda a floresta, de acordo com um artigo publicado na Nature esta quarta-feira, que reforça a importância de uma maior protecção daquele bioma para travar o desmatamento, da reflorestação de áreas degradas e da diminuição drástica das emissões de gases com efeitos de estufa para proteger aquele ecossistema.

“O estudo foi feito com o objectivo de juntar todas as peças do quebra-cabeças que existiam na literatura, para termos uma visão ampla e geral da possibilidade de a Amazónia alcançar um ponto de não retorno”, explica ao PÚBLICO Bernardo Flores, investigador da Universidade Federal de Santa Catarina, em Florianópolis, no Brasil, e primeiro autor do estudo da Nature, que conta com mais de duas dezenas de autores.

65 milhões de anos de vida

A floresta da Amazónia é um dos lugares mais ricos em termos de biodiversidade e de culturas humanas do mundo. Os cientistas acreditam que esta floresta exista há 65 milhões de anos, o que permitiu a evolução de muitas formas de vida distintas. A Amazónia conta com 10% de todas as espécies do planeta, entre as quais, 15.000 espécies diferentes de árvores.

O bioma estende-se ao longo de 6,7 milhões de quilómetros quadrados (mais de 11 vezes a área da Península Ibérica), em oito países da América do Sul, e tem uma grande riqueza cultural. “A Amazónia é o lar de mais de 40 milhões de pessoas, incluindo 2,2 milhões de pessoas indígenas de mais de 300 etnias, assim como de comunidades de afrodescendentes e comunidades tradicionais locais”, lê-se no artigo. Há muitas áreas protegidas dentro da Amazónia e várias reservas pertencentes a diferentes povos indígenas, que têm um papel muito importante na preservação da floresta.

Apesar disso, 17% da floresta já foi degradada devido à acção humana. A desflorestação, a construção de estradas e os incêndios são três grandes problemas da região. Este impacto crescente pode provocar a destruição de áreas da floresta que ultrapassam um ponto de não retorno, deixando de ter as condições climáticas para suportar a existência de uma floresta tropical húmida. Nesses casos, a floresta passa a existir num regime degradado, com espécies invasoras a tornarem-se dominantes, mais susceptível a incêndios. Em certas áreas que são sazonalmente alagadas, a floresta pode ser substituída pela savana de areia branca, como já ocorre em algumas regiões.

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Um incêndio florestal na Amazónia, na Rondónia, no Brasil Andre Dib/Nature

Aquelas mudanças põem em causa os serviços de ecossistema que a Amazónia presta ao planeta. “A floresta contribui para 50% da chuva na região e é crucial para o fornecimento de humidade em toda a América do Sul, permitindo que outros biomas e actividades económicas prosperem em regiões que, de outro modo, seriam mais áridas”, de acordo com o documento.

Se aquela degradação, que está a ocorrer localmente, se alastrar por muitas áreas, haverá o risco de a falta de chuva regional em complemento com outros factores, como o aumento de temperatura causado pelas alterações climáticas, fazer subir o ponto de não retorno para todo o bioma. Nesse caso, fica comprometido o papel da Amazónia como sumidouro de dióxido de carbono (CO2), o principal gás responsável pelo efeito de estufa, cujo aumento excessivo na atmosfera tem vindo a provocar alterações no clima e o aquecimento global.

Por enquanto, a floresta amazónica “armazena uma quantidade de carbono equivalente a 15 a 20 anos de emissões globais de CO2 e tem um efeito líquido de arrefecimento (vindo da evapotranspiração) que ajuda a estabilizar o clima da Terra”, lê-se no artigo. No entanto, as medições atmosféricas feitas pelos cientistas mostraram que no Sudeste da Amazónia a floresta já passou a ser um emissor de CO2.

Um mapa de riscos

Perante o valor transversal da Amazónia e o enorme risco da sua perda, a comunidade científica tem tentado estimar o melhor possível a quantidade de impactos que a Amazónia ainda pode suportar e, tendo em conta as tendências de degradação actuais, quão próximos estamos desse ponto de não retorno para toda a região. O novo estudo é mais uma contribuição para estes cálculos e renova um aviso que tem vindo a ser repetido. “A perda da floresta resultaria em enormes quantidades de emissões e um desequilíbrio no clima do planeta”, afirma Bernardo Flores.

Para isso, a equipa compilou várias informações. “Incluímos dados de modelos que simulam o comportamento da vegetação diante de mudanças no clima e desmatamento, com dados de paleoecologia e paleoclima, que mostram como a Amazónia respondeu nos passados milhares e milhões de anos, junto com dados actuais de satélite e de campo sobre como a floresta está respondendo em várias partes da Amazónia”, relata o investigador.

Depois, os investigadores construíram um mapa da Amazónia sobre o risco de degradação daquele bioma em 2050. Esse mapa teve em conta vários factores: o aumento da temperatura média devido às alterações climáticas, as áreas florestais que já estão degradadas e que já são savanas de areia branca, o número de eventos extremos de seca entre 2001 e 2018, as estradas construídas pela floresta – áreas perto de estradas são mais susceptíveis à degradação –, e territórios protegidos e áreas de reserva indígena – que são menos susceptíveis à degradação.

“Tinhamos estudos que olhavam para um ou poucos aspectos desse sistema complexo, mas faltava conectar esses factores num único entendimento”, contextualiza Bernardo Flores.

O resultado é um mapa de cores que traduz uma escala de risco. A quantos mais factores de perturbação uma dada área florestal estiver submetida, mais susceptível está de atingir um ponto de não retorno. Há 10% da área da florestal da Amazónia que tem um “potencial alto de transição” para uma floresta degradada, já que está submetida a três ou quatro factores de perturbação, de acordo com o artigo. Mas, ao todo, 47% do território tem, pelo menos, um potencial moderado, com dois ou mais factores de perturbação.

“Identificámos um processo de homogeneização da floresta, que ficaria degradada com poucas espécies, baixa capacidade de fornecer alimento, armazenar carbono, reciclar chuvas. Essas mudanças trariam consequências negativas para o bem viver dos povos da Amazónia e poderiam tornar certas partes inabitáveis”, avisa o investigador.

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Uma das figuras publicadas no artigo com vários mapas de risco. Resumidamente, o mapa a) mostra as mudanças na temperatura média da estação seca (julho-outubro) que revelam um aquecimento generalizado. O mapa b) destaca as classes de estabilidade potencial do ecossistema estimadas para o ano de 2050, adaptadas das classes de estabilidade actuais. O mapa c) revela eventos de seca extrema repetidos entre 2001-2018. No mapa d) vê-se a rede de estradas a partir da qual o desmatamento ilegal e a degradação se podem espalhar. Na imagem e) estão assinaladas as áreas protegidas e territórios indígenas que reduzem o desmatamento e os distúrbios causados pelo fogo. Por fim, no mapa f) vê-se o potencial de transição do ecossistema (a possibilidade de mudança da floresta para um estado estrutural ou composicional alternativo) no bioma Amazônia até o ano de 2050. Para mais detalhes consulte o artigo em https://www.nature.com/articles/s41586-023-06970-0 Flores, B.M., Montoya, E., Sakschewski, B. et al. Critical transitions in the Amazon forest system. Nature

Segundo os resultados do mapa, 53% do bioma terá um potencial de transição baixo em 2050. Este risco menor surge em extensas áreas remotas associadas a zonas protegidas e a territórios indígenas. Infelizmente, até mesmo estas regiões, aparentemente mais protegidas, poderão sucumbir, como consequência da transição que pode ocorrer no resto do bioma. “Quando se perde mais florestas, podemos chegar ao ponto de não retorno pela redução de chuvas resultante”, resume Bernardo Flores. “Concluímos que até 2050 a perda de 10% a 47% das florestas por distúrbios poderia levar o sistema como um todo a um ponto de não retorno de grande escala.”

Os limiares da floresta

A partir deste cenário, a equipa identificou cinco variáveis importantes que afectam directa ou indirectamente o ponto de não retorno na Amazónia: o aquecimento global, a chuva anual, a chuva sazonal, o número de meses da temporada seca e a desflorestação acumulada numa certa área. Todas estas variáveis estão relacionadas com o stress hídrico da floresta – quanto maior for o stress hídrico, maior o risco de se atingir um ponto de não retorno. Para cada variável, a equipa identificou um limiar crítico de transição, a partir do qual se entra em território vermelho, e um limite de segurança que não deve ser ultrapassado, se quisermos proteger a Amazónia.

No caso do aquecimento global, o limiar crítico são os dois graus de aumento de temperatura média global, e o limite de segurança são os 1,5 graus (embora o grau de confiança seja baixo para estes valores). No caso da precipitação anual, o limiar crítico é uma precipitação abaixo dos 1000 milímetros e o limite de segurança é de mais de 1800 milímetros anuais de chuva. Já o limiar crítico do desmatamento é de 20% de área desflorestada, e o limite de segurança é de 10%.

Se nada for feito, vários destes limites vão ser ultrapassados nas próximas décadas. “O limite do aquecimento global de 1,5 graus foi alcançado em 2023 por causa do forte El Niño. Na média estamos entre 1,2 e 1,3 graus, mas chegaremos nesse limite de segurança provavelmente antes de 2030. Os limites das chuvas seriam alcançados até 2050 em partes das regiões sul e norte da Amazónia. Chegaríamos ao limite do desmatamento acumulado perto de 2060, na velocidade actual de perda de florestas”, indica Bernardo Flores.

O investigador defende que é possível evitar esses limites perigosos com medidas de redução do desmatamento e da degradação florestal, e aumentando o restauro dos ecossistemas, o que resultaria numa benéfica expansão da floresta. “Também são fundamentais acções que reduzam drasticamente as emissões de gases de efeito estufa para mitigar os impactos no clima amazónico, pois, sem isso, não será possível conter o desmatamento e o fogo na floresta”, assevera.

Mas há um prazo para se cumprirem essas medidas, avisa Bernardo Flores: “Depois de passarmos o ponto de não retorno, não adiantarão mais essas acções, pois o sistema entraria num processo de aceleração de mudança fora de controlo.” E, nesse caso, seria o fim da Amazónia como a conhecemos.