Duas demissões no coração do regime de Orbán não param escândalo na Hungria

Presidente e a que seria a cabeça de lista às europeias saem por perdão a condenado por cumplicidade com pedófilo. O caso deu início a um desafio ao regime de Orbán vindo de dentro.

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Katalin Novak e Viktor Orbán durante a visita do Papa Francisco, em Abril de 2023 EPA/LUCA ZENNARO
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Parece ser a primeira vez que o regime do primeiro-ministro iliberal, Viktor Orbán, na Hungria é desafiado por dentro: uma entrevista de Peter Magyar, ex-marido de Judit Varga, a antiga ministra da Justiça que se demitiu no sábado, tal como a Presidente, Katalin Novak, na sequência de um perdão a um cúmplice de um homem condenado por pedofilia, caiu como uma bomba. Magyar acusou o regime de “se esconder atrás de saias” e declarou que “metade do país pertence a poucas famílias”, numa entrevista que se tornou viral.

“Não me lembro de um dia tão louco na política interna húngara”, declarou na rede social X o jornalista Bálint Ablonczy. “[Depois da entrevista] estamos a navegar em águas desconhecidas.”

O escândalo inicial foi a revelação de que entre alguns vinte perdões concedidos por altura da visita do Papa Francisco à Hungria em Abril de 2023 estava o vice-director de um orfanato que fora condenado pelo encobrimento de um pedófilo.

Para um governo que tem insistido na sua defesa dos direitos das crianças, a gravidade do escândalo inicial foi tal que levou à demissão da Presidente e da antiga ministra da Justiça, que também assinou o perdão. Judit Varga anunciou que deixava o seu ligar de deputada e se retirava da vida pública.

“A hipocrisia do regime de Orbán a pregar a protecção das crianças, enquanto preside a um Estado claramente em falta, que não protege as crianças, é gritante”, escreveu Katalin Cseh, eurodeputada do partido de oposição centrista Momentum, no X. “Foi um sistema institucional subfinanciado e disfuncional que permitiu que o abuso de crianças continuasse durante anos.”

As demissões são relevantes, porque ambas as políticas tinham papéis importantes dentro do regime de Orbán. Stanley Pignal, que escreve a coluna Charlemagne sobre questões europeias na revista britânica The Economist (e é o chefe da sua delegação em Bruxelas), comentou na rede social X que Novak era “a cara das suas políticas natalistas” e Varga “deveria liderar a cruzada ‘anti-woke’ em Bruxelas”.

Ou seja: “a fábrica de poder percebeu rapidamente que o perdão dado por Katalin Novak é uma questão com potencial fatal para a qual a solução mais rápida é este tipo de excisão cirúrgica ou amputação”, comentou o analista político Gábor Török.

Mas, de seguida, o ex-marido de Varga deu um passo que levou o escândalo ainda mais longe. Dizendo não querer, “nem por mais um minuto, fazer parte de um sistema em que os culpados reais se escondem atrás de saias de mulheres”, o advogado anunciou que se demitia dos seus cargos em empresas do Estado.

Frases sobre democracia e Estado de direito não captam o essencial sobre a situação na Hungria, disse ainda. “É normal que metade do país tenha ficado nas mãos de um par de famílias? Penso que não.”

Stefano Bottoni, professor na Universidade de Florença que é autor de Orbán. Un Despota in Europa (original em italiano de 2019, sem tradução em português) chamou à entrevista de Magyar “uma declaração de guerra ao sistema, com menção àqueles que estão por trás do perdão que obrigou ambas as mulheres a demitir-se” – e, ainda que não tenha dito o nome do primeiro-ministro, “deu a entender” que o incluiria nesse rol.

O antigo deputado socialista Csaba Tóth chamou a atenção para “o apelo à acção do público” feito por Magyar. “É uma péssima notícia para a estabilidade política [de Orbán]. Pode criar uma dinâmica”, declarou.

Se já houve vezes em que esta dinâmica foi vista, e nunca concretizada, esta partiu de acções cívicas (por exemplo, o caso do Momentum, que surgiu como movimento de cidadãos em 2017 contra a candidatura da Hungria às olimpíadas de Verão de 2024) ou da decisão de a oposição concorrer em conjunto contra Orbán.

Esta é a primeira vez que alguém do sistema protagoniza um desafio. “Muitos perguntam a razão de me ter mantido em silêncio até agora”, escreveu Magyar no Facebook. Entre razões familiares e dificuldades em romper com “a vida inteira”, o ex-marido de Varga disse ainda: “Apesar do que muitos possam afirmar, a maioria do Fidesz não é como Antal Rogán [ministro adjunto do primeiro-ministro] e figuras como ele. Há muitas pessoas decentes a trabalhar neste sistema só pelo seu país e pelo bem do povo húngaro, e não para o enriquecimento de oligarcas.”

“Não tenham medo”, escreveu ainda Magyar nos dois posts que publicou no Facebook sobre o seu afastamento. “Nada dura para sempre.”

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