Quem cuida de quem cuida da biodiversidade?
Custou dez cêntimos o saco de supermercado que o velhote cuidadosa e vagarosamente dobrava. À sua volta crianças, que supus serem os netos, gargalhavam férias. Eu olhava este espetáculo do quotidiano segurando uma geleira elétrica carregada de blocos acumuladores de frio e uns tubinhos de sangue de bichos raros, que por nada podiam descongelar. Nesse dia conduziria praticamente mil quilómetros até chegar ao laboratório; a cada 200 vencia as arritmias quando abria a geleira e confirmava a temperatura.
O quase-carinho com que o velhote dobrava o saco, em contraste com a minha aflição gelada a contrarrelógio, fez-me pensar em como nos cruzamos a toda a hora com pessoas com vidas tão completamente diferentes das nossas. As coisas tão díspares que cada um valoriza.
São incontáveis as profissões que têm um certo sentido de missão, de cujo sucesso muitas vidas dependem, no que toca ao bem-estar coletivo. E cada um desses profissionais leva uma vida quotidiana que, nos seus concretos diários, se enche ora de um certo heroísmo, ora de minudências risíveis a que ninguém escapa, como repor o papel higiénico ou fazer o IRS. Similarmente, não se conhece a estes profissionais as diárias derrotas e dores, nem nenhum admitirá que se enrola pequenino, na forma de uma conchinha.
Sendo inúmeras as tais profissões, reporto os bastidores da que melhor conheço, do pessoal que dedica a sua vida profissional (e também emocional...) a proteger o Planeta. Ou a natureza, ou o ambiente, ou a biodiversidade, como se preferir; neste caso admite-se a grosseira sinonímia.
A luta contra a degradação do mundo natural é também uma luta contra o tempo. O global, de todos, mas também o nosso, pessoal e insignificante ao outro, que realmente importa. E temos invariavelmente assuntos de tempo (entre outros) mal resolvidos.
Ainda enquanto estudamos temos tempo na mesma proporção da sede de aprender. Então esgotamo-lo a atravessar o país para ir ver leirões ou cágados ou espécies cujo nome científico ainda não sabemos pronunciar. Não temos também dinheiro para roupa ou calçado de campo adequados, então passamos a vida de pés molhados e a assoar-nos como os jogadores de futebol. Uns anos depois já temos umas botas razoáveis, mas continua a fugir-nos o tempo.
A mãe telefona a perguntar se conseguimos lá ir neste Natal, e não estranha quando dizemos que vai depender da recuperação da Matilde (é claro que a Matilde é um bicho qualquer ao nosso cuidado). Ou vamos à consoada, mas temos de voltar logo na manhã seguinte para fazer as amostragens de inverno, porque o equipamento só está disponível nesta semana (imagine-se porquê).
Há sempre um arrojamento a que ir acudir, um andorinhão de asa partida ou, literalmente, um incêndio para ir apagar. Na primavera é normal andarmos nos morcegos até à uma hora da madrugada, e acordarmos às quatro, para estar em campo ao nascer do sol, a tempo dos passarinhos. Durante a tarde, há flores ou répteis ou anfíbios a que atender, e nidificações para monitorizar.
Em setembro voltamos a acordar às quatro, mas agora para subir a serra e contar veados. Às vezes preferimos dormir por lá, na serra, numa antiga casa de cantoneiros. Mas temos de varrer o tapete de caganitas de ratazana para poder estender o saco-cama e, claro, acender a lareira para as manter afastadas – as ratazanas (creio que as caganitas não tenham vida própria).
Na jorna, correndo tudo bem, limitamo-nos a trabalhar as normais 16 horas, e não furamos vários pneus, não somos assediados por lenhadores, nem somos surpreendidos por matilhas de cães assilvestrados com os dentes arreganhados (esta é uma ótima história, mas não é minha). Entre duas serras passamos no almoço de família com o carro cheio de excrementos e de cadáveres.
Ali pelos trintas surgem os primeiros questionamentos sobre o tempo. A Dulce já tem dois filhos na escola, nós ficaríamos contentes de não nos esquecermos da roupa lavada a apodrecer na máquina. Do ferro ligado não nos esquecemos, porque não acreditamos em roupa amarrotada.
Continuamos a aceitar projetos e lutas, até David nos assumirmos, contra um interminável Golias. Parece que o tempo já não alonga como dantes (nem as costas) – e aí contratamos um doutor engenheiro para nos substituir nalgumas tarefas. O doutor engenheiro tem um diploma idêntico ao nosso, com coisas académicas lá escritas. Só que nenhuma universidade certifica a paixão. O projeto não é do doutor engenheiro, não o vive, não pode usar o carro dele, e só pode estar até às 18 horas. Na verdade, frustramo-nos, arreliamo-nos, mas chega aquele dia em que também queremos ir embora às 18 horas.
Porque corremos, carregámos, fintámos e estrebuchámos, mas os bichos continuam a morrer. Agora já só há quarenta, mas ainda ontem um foi baleado. Os peixes afogaram-se no lodo químico. O carvalho dos morcegos-orelhudos foi abatido na semana passada. O charco dos sapinhos foi aterrado. A Matilde não sobreviveu.
A cada bicho que morre, morre também um pouco de nós (velho bordão). Some-se o tempo insignificante que lhe dedicámos. O tempo que privámos aos nossos. Desvanece-se um pouco da ilusão de fazermos alguma diferença.
Lutamos na certeza de um luto que não acaba e que nem sabemos quando começou. Esse pesar que nos move e que nos mata. E é aqui que entram outros heróis, tipicamente nunca falados, que são todos aqueles que nos estendem a alma e os braços. Nem sempre entendem o fascínio pelas eufórbias, mas percebem onde está o nosso coração. E quando este se esmorece, reanimam-no abnegadamente, sabendo que o terão sempre de partilhar.
O amigo que nos leva ao jogo, a vizinha que nos traz o jantar, a mãe que nos alimenta o cão, a namorada que nos oferece um troféu de brincar, o irmão que nos ampara. Impõe-se o derradeiro agradecimento. Obrigada por tomarem conta. Com a vossa luz, talvez um dia, por fim, nos tornemos velhinhos satisfeitos a dobrar sacos. Ou a contar patos.
A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico.