Risco de extinção dos animais migratórios aumenta a nível global

Primeiro relatório sobre espécies migratórias mostra que muitas estão em declínio. Situação dos peixes é particularmente preocupante.

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Há centenas de espécies de aves que migram ao longo do ano entre continentes, como a escrevedeira-de-cabeça-preta PIYAL ADHIKARY/EPA
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O estado de conservação das espécies migratórias está a piorar. Esta é a conclusão mais geral do primeiro relatório global sobre este grupo de espécies que atravessam regiões, por vezes continentes, que estão submetidas a várias actividades humana, sofrendo a sobreexploração e a perda e fragmentação dos habitat, e que estão dependentes de medidas de conservação concertadas, de diferentes países, para poderem manter o seu ciclo de vida.

O relatório, publicado nesta segunda-feira, marca o arranque da 14.ª Conferência das Partes da Convenção sobre a Conservação das Espécies Migratórias de Animais Selvagens das Nações Unidas, que decorre até sábado, 17 de Fevereiro, na cidade asiática de Samarcanda, no Uzbequistão. A convenção foi assinada em 1979, em Bona, então Alemanha Ocidental, depois de se reconhecer a necessidade de uma cooperação internacional para a protecção daquelas espécies.

Ao todo a convenção identificou e fez uma lista de 1189 animais que necessitam de protecção a nível internacional, entre aves (962 espécies), mamíferos terrestres (94), mamíferos aquáticos (64), peixes (68), répteis (dez) e insectos (apenas uma espécie, a borboleta-monarca). Destas, o novo relatório revela que 70 espécies “mostram uma deterioração do seu estatuto de conservação”, lê-se no sumário executivo do documento. Animais migradores como a águia-das-estepes (Aquila nipalensis), o abutre-do-egipto (Neophron percnopterus) e o camelo-asiático (Camelus bactrianus) encontram-se nessa situação. Por outro lado, apenas 14 espécies viram o seu estatuto melhorar, como a baleia-azul (Balaenoptera musculus) e o colhereiro-de-cara-preta (Platalea minor).

Há mais números, 44% das espécies apresentam declínios nas suas populações e 22% estão mesmo em risco de extinção. Há situações muito preocupantes, como os peixes, em que 97% das 68 espécies listadas pela convenção estão em risco de extinção, como a enguia (Anguilla anguilla) e o esturjão (Acipenser sturio). Neste caso, a sobreexploração dos recursos é o principal problema.

“O relatório de hoje mostra claramente que as actividades humanas insustentáveis estão a prejudicar o futuro das espécies migratórias – criaturas que não só funcionam como indicadores das mudanças do ambiente, mas também têm um papel integral no funcionamento e na resiliência dos ecossistemas complexos do nosso planeta”, defendeu Inger Andersen, directora executiva do Programa Ambiental das Nações Unidas, em comunicado.

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As borboletas-monarca são a única espécie de insectos que faz parte da lista de 1189 animais que necessitam de protecção a nível internacional Raquel Cunha/REUTERS

Visão do globo

“A grande vulnerabilidade das espécies migratórias é que dependem do bom estado do habitat em diferentes regiões diferentes, quer sejam terrestres ou aquáticas. “Isso faz com que seja mais difícil de conservar estas espécies”, explica ao PÚBLICO Jorge Palmeirim, biólogo especialista na área de ecologia e professor da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e presidente da Liga para a Protecção da Natureza.

O investigador dá o exemplo das aves que migram entre a Europa e a África. “Até se podem tomar medidas de conservação na Europa, mas as aves acabam por ter problemas em África, onde vão passar o Inverno. Isso faz com que globalmente seja mais difícil gerir a sua conservação”, diz, defendendo por isso que os países ricos devem apoiar a conservação da natureza no Sul global.

Para Jorge Palmeirim, os resultados do relatório não o surpreenderam, mas o documento não deixa de ser significativo por isso. “É importante ter esta visão de globo, afastar-nos do globo e ver quais são os problemas das espécies que se passeiam pelo planeta”, refere.

Além dos animais que estão listados na convenção, o relatório avaliou ainda mais de 3000 espécies migratórias que não estão na lista. Destas, há 399 ameaçadas ou quase ameaçadas de extinção. Na sua maioria, são aves e peixes, como albatrozes e passeriformes, e alguns tubarões e raias. Uma das recomendações do relatório é a possibilidade de integrar algumas daquelas espécies na lista da convenção.

As principais ameaças das espécies migratórias identificados no relatório são a perda, a degradação e a fragmentação dos habitat (causadas principalmente pela agricultura), que afectam ao todo 481 espécies da lista e a sobreexploração (que passa pela caça e a pesca dos animais, incluindo as capturas acidentais, e pela captura para outros fins), que afecta 446 espécies. Mas a poluição e o impacto das alterações climáticas, cada vez mais sentidas, são outros problemas para as espécies migratórias.

Ainda outro desafio são as barreiras nos territórios, como as grandes barragens e outras infra-estruturas nos rios, que impedem os peixes de viajar nestes cursos de água, ou grandes vias como as auto-estradas, que são uma fonte de perigo para muitos animais.

“É preciso assegurar a protecção do habitat destas espécies, em termos da agricultura, em termos de transportes, de industrialização, da caça, da pesca”, explica ao PÚBLICO Catarina Grilo, directora de conservação e políticas da ANP/WWF, associação ambiental portuguesa. “É preciso reduzir os impactos da poluição ambiental.”

Por outro lado, foram identificadas ao todo 10.000 zonas-chave da biodiversidade que têm importância para as espécies migratórias em todo o mundo. Mas, segundo o relatório, mais de metade da área que aquelas zonas perfazem não são alvo de protecção, o que dificulta a conservação daquelas espécies.

Neste cenário, o relatório define algumas prioridades para reverter a situação de declínio vigente: aumentar o esforço para travar a caça e a pesca ilegais, assim como evitar a captura acidental de outros animais; aplicar medidas urgentes em relação aos animais que estão mais em risco, principalmente as espécies de peixes; conseguir identificar, conectar e proteger territórios importantes para as espécies migratórias; e aumentar o esforço para enfrentar tanto as alterações climáticas, como os vários tipos de poluição, não só a química e a provocada pelo plástico, mas também a poluição luminosa e a sonora.

Tudo isto necessitará de um esforço concertado entre os vários países. “A comunidade global tem uma oportunidade de traduzir a mais recente ciência sobre as pressões que as espécies migratórias enfrentam em acções concretas de conservação. Dada a situação precária de muitos destes animais, não podemos dar-nos ao luxo de atrasar mais, e temos de trabalhar juntos para tornar estas recomendações realidade”, concluiu Inger Andersen. A convenção que começa nesta segunda-feira em Samarcanda será, deste modo, uma oportunidade para isso.