“Venham buscar-me”: Hind, de seis anos, encontrada morta em Gaza 12 dias depois

Crescente Vermelho Palestiniano acusa Israel de ter atacado deliberadamente a ambulância enviada para resgatar a menina, presa dentro de um carro e rodeada por familiares mortos.

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Hind foi morta com os tios e os primos, dentro do carro onde tentavam escapar da Cidade de Gaza Fotografia de Hind divulgada pelas autoridades de Gaza
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“Estou com tanto medo, por favor venham”, pediu Hind Rajab. “Venham buscar-me. Vão tirar-me daqui?”, perguntou, desde o interior do carro do tio, entre os corpos dos tios e dos cinco primos, mortos a tiro pelas tropas israelitas. A conversa com a operadora do Crescente Vermelho Palestiniano durou três horas, até ser possível coordenar o envio de ajuda. A menina de seis anos falou mais algum tempo com a mãe, até lhe dizer que via a ambulância. Este sábado, foi encontrada morta, com o resto da família, dentro do carro. A ambulância e os dois tripulantes, mortos, estavam a poucos metros de distância.

Era 29 de Janeiro e a família de Hind tinha fugido de casa, na Cidade de Gaza, nessa manhã, depois de as Forças de Defesa de Israel (IDF) dizerem à população para abandonar as áreas a oeste da cidade e se dirigirem para sul. A mãe, os irmãos e outros familiares seguiram a pé. Hind tinha lugar no carro dos tios e a mãe quis protegê-la da chuva e dos ataques aéreos. A viagem foi curta, com o carro a cruzar-se rapidamente com tanques israelitas e o tio de Hind a procurar refúgio numa bomba de gasolina.

Debaixo de disparos, os tios telefonaram a familiares e estes contactaram a sede do Crescente Vermelho Palestiniano, na Cisjordânia ocupada. A primeira vez que os operadores ligaram para o número do tio, ao início da tarde, foi Layan Hamadeh, de 15 anos, que atendeu. “Eles estão a disparar contra nós… o tanque está ao meu lado”, disse a adolescente, antes de a chamada cair. A segunda vez já foi Hind a atender.

“Layan foi morta e Hind, de seis anos, continuou presa dentro do carro, cercada por tanques e soldados da ocupação”, disse, na altura o Crescente Vermelho, explicando que queria socorrê-la, mas não conseguia alcançá-la devido ao permanente tiroteio na zona. “Por mais de três horas, os operadores permaneceram em contacto com a criança para a acalmar, enquanto ela pedia para ser retirada do carro”, descreveu. Durante a tarde, foi possível enviar uma ambulância para o local, mas a organização perdeu o contacto com a equipa médica logo depois.

Rana Faqih, a operadora que passou horas ao telefone com a menina, contou à BBC que lhe disse para se esconder debaixo dos bancos. “Disse-nos que [os familiares] estavam mortos. Mas depois descreveu-os como estando a dormir. Então, eu disse-lhe ‘deixa-os dormir, não queremos incomodá-los’”, recordou, explicando que Hind estava sempre a pedir para a irem buscar. “A certa altura, disse-me que estava a escurecer”, afirmou Rana. “Ela estava assustada. Perguntou-me a que distância estava da minha casa. Senti-me paralisada, impotente.”

O Crescente Vermelho ainda não tinha conseguido ter acesso à zona até que, este sábado, alguns familiares de Hind descobriram o automóvel, horas depois de as IDF se retirarem, explicou o avô de Hind, Baha Hamada, à AFP. A organização palestiniana, que antes divulgara partes das conversas com Layan e com Hind, publicou imagens da ambulância, carbonizada quase por completo, e depois fotos dos dois tripulantes, Yusuf Zeino e Ahmed Al-Madhoun.

“A ocupação [israelita] atacou deliberadamente a tripulação do Crescente Vermelho, apesar da coordenação prévia para permitir que a ambulância chegasse ao local para resgatar a criança”, acusou a organização num comunicado.

Mais de 12 mil crianças mortas

“À chegada, [a tripulação] confirmou que podiam ver o carro onde Hind estava presa, e podiam vê-la. A última coisa que ouvimos foram disparos”, disse a porta-voz do Crescente, Nebal Farsakh, em conversa com a BBC no início desta semana.

“A todas as pessoas que ouviram a minha voz e a voz suplicante da minha filha, mas não a resgataram, vou interrogá-las perante Deus”, afirmou Wissam, a mãe de Hind. A primeira vez que a emissora britânica falou com a mãe, no hospital onde esperava por notícias da filha, Wissam tinha consigo a pequena mala cor-de-rosa de Hind, que dizia estar a guardar para a menina.

A situação de Hind, “revelada nos angustiantes trechos de áudio da sua conversa com os socorristas há 12 dias, sublinha as condições impossíveis para os civis na guerra de quatro meses, desencadeada pelo chocante ataque do Hamas, a 7 de Outubro, quando terroristas mataram 1200 pessoas e fizeram 253 reféns”, escreve o jornal The Times of Israel.

O número de palestinianos confirmados mortos nos ataques israelitas na Faixa de Gaza chegou este sábado aos 28.064, incluindo mais de 12 mil crianças, segundo o Ministério da Saúde de Gaza – os dados do governo controlado pelo Hamas não distinguem combatentes de vítimas civis, mas são considerados credíveis pela ONU e até pelos EUA, sendo citados pela imprensa israelita. Há ainda mais de oito mil pessoas desaparecidas debaixo dos escombros.

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