“Claro desinvestimento” no combate às drogas. João Goulão avisa que não tem meios para “actuar no terreno”
Presidente do Instituto para os Comportamentos Adictivos e Dependências critica “desinvestimento” na luta contra a droga e estranha silêncio na campanha eleitoral
João Goulão é, desde 1997, o maior especialista em Portugal em combate à toxicodependência comportamentos aditivos. À beira de completar 70 anos, cabe-lhe deixar a funcionar o novo Instituto para os Comportamentos Adictivos e Dependências (ICAD), que funde serviços dispersos pelo Governo de Passos Coelho. O recrudescimento da droga no vale de Alcântara, em Lisboa, é um dos últimos desafios. A entrevista Hora da Verdade, uma parceria do PÚBLICO-Renascença, pode ser ouvida pelas 23 horas desta quinta-feira.
Esta semana, os presidentes de duas juntas de freguesia de Lisboa, Alcântara e Campo de Ourique, escreveram-lhe uma carta aberta a pedir medidas urgentes por causa do aumento do consumo e tráfico de droga no vale de Alcântara, em Lisboa. Ficou surpreendido com o relato que lhe foi feito?
Não fiquei de todo surpreendido porque é uma coisa que temos vindo a assistir de forma crescente.
Em Julho do ano passado eu dizia, numa entrevista, que se não fizermos nada urgentemente, vamos ter aqui de novo um Casal Ventoso. Em Julho, já a situação era bastante problemática.
E ninguém o ouviu?
De alguma forma, fui ouvido e interagi com pessoas responsáveis por outras instituições, nomeadamente com a Câmara Municipal de Lisboa. Mas alguns aspectos que vimos sentindo como condicionantes da intervenção naquele naquele território não tiveram grandes evoluções. Temos ali o espaço de consumo vigiado, mas essa não pode ser tida como uma resposta mágica que vai resolver todos os problemas.
É um espaço de apoio integrado, com oferta de várias valências, entre as quais o espaço para consumo vigiado, apoio social e encaminhamento para outras respostas de saúde, serviços que têm a ver com respostas habitacionais. A grande virtualidade é servir como um pólo de atracção para uma população porventura mais desorganizada de utilizadores de drogas e através da interacção numa base diária, haver um ganho de confiança nos profissionais de saúde e a capacidade de os captar para outro tipo de respostas, porventura mais diferenciadas e que tenham um real impacto na mudança de seu estilo de vida.
E o que é que não tem funcionado?
Esta parte tem funcionado, mas há um certo acumular à porta pela capacidade reduzida de resposta mas sobretudo porque não há uma capacidade de drenagem. Há ali um efeito de funil, porque não se consegue encaminhar as pessoas, nem mesmo todas aquelas que desejam para estruturas de tratamento de uma forma ágil e expedita, sem listas de espera, sem constrangimentos. Tem havido também um depauperamento brutal nas equipas de tratamento que operam na cidade de Lisboa. E há uma grande dificuldade em responder a todos aqueles que pretendem tratar-se.
Tivemos uma conjuntura um tanto problemática porque aconteceu a crise política, mais um delay de três meses e tal. Com isso, a passagem do SICAD para ICAD só vai consumar-se no final de Março. Os supostos mil profissionais que era suposto virem das ARS ainda não chegaram. Não temos meios para actuar no terreno. O ICAD não tem, por exemplo, orçamento.
Então o que é que responderá aos dois autarcas que escreveram esta semana?
Que têm razão. Não pode haver ninguém mais interessado do que nós próprios em contribuir para a resolução dos problemas. É um esforço multidepartamental que é necessário desenvolver. Há componentes variadíssimas neste avolumar de uma população muito desorganizada, muito fragilizada do ponto de vista social e também de saúde, que exige respostas rápidas.
Ainda na ressaca da pandemia, da crise económica e social?
Exactamente. Também na ressaca da pandemia e dos enormes impactos que a pandemia teve na saúde mental da população, mas também da crise de habitação, a pressão demográfica, pressão migratória de pessoas muito fragilizadas e carentes de respostas ao nível habitacional.
O problema não é só em Lisboa. A situação repete-se, por exemplo, em diversos bairros do Porto, também nas ilhas, há um problema grave de uso de drogas nos Açores, por exemplo.
E na Madeira. Em determinado momento tivemos sucesso a lidar com uma situação verdadeiramente cataclísmica que vivemos nos anos 80 e 90, relacionado com a epidemia da heroína. Fomos eficazes. Encontramos políticas inovadoras que passaram também por a guerra à droga ter deixado de ser uma guerra aos utilizadores de droga.
E porque é que agora não está a funcionar?
Em 1997, os problemas da droga e da toxicodependência eram a primeira preocupação dos portugueses identificados em Eurobarómetros. Por 2010, tinha caído para 13.º ou 14.º no ranking das preocupações.
As pessoas deixaram de percepcionar como um problema e o poder político foi atrás?
Foi atrás. Houve um claro desinvestimento. Nós continuamos a ser muito visitados por delegações estrangeiras que vêm ver o famoso modelo português e tenho alguma dificuldade em explicar que o desinvestimento político não se traduziu directamente num corte orçamental abrupto, brutal, não. Aquilo que houve foi: deixou de se falar no assunto, deixou de se encontrar soluções para que os serviços de saúde dedicados a esta área fossem atractivos para os profissionais de saúde.
Durante a tal epidemia da heroína, era fácil recrutar profissionais, fazê-los, inclusive acumular actividade com outras áreas do Serviço Nacional de Saúde.
Neste momento, estamos em pré-campanha eleitoral e não há nenhum líder político a falar deste problema.
Ainda não vi.
Acha que é por tabu ou por realmente não ligar?
É impossível não ligar. As coisas estão a ganhar uma dimensão que não é possível não ligar. Por isso gostava de manifestar a minha solidariedade também aos presidentes das juntas de freguesia e aos subscritores de organizações não-governamentais que assinaram a tal carta. Embora seja um dos destinatários, estaria pronto a assinar por baixo. São alertas muito pertinentes e acho que vale a pena olhar para isto com muita atenção e no momento político particular que estamos a viver era importante que os partidos políticos inscrevessem alguns destes objectivos nos seus programas eleitorais.
Acha que os programas devem ter uma estratégia de luta contra as drogas e as dependências, ou acha que os programas políticos estão cada vez mais liberais?
Estão, estão muito liberais. De qualquer forma, temos em execução um plano para a redução dos comportamentos aditivos e dependências, que é um plano que foi aprovado sob a forma de resolução do Conselho de Ministros. Temos ainda um mandato que tem a ver também com substâncias lícitas, como o álcool, que têm peso no tecido produtivo nacional. Eu não preciso sequer de chamar os representantes da indústria de bebidas alcoólicas para dirimir determinadas medidas porque no seio do Governo há quem faça a defesa desta fileira económica.
Como é que explica isso?
Porque é assim.
É um lobbying?
É um lobbying que tem compreensivelmente representação também nos interesses da economia e do desenvolvimento de uma fileira económica no tecido empresarial português.
Isto envolve tensões, tal como há tensões naquilo que tem a ver com o regular o uso não-medicinal de cannabis. Há tensões entre os valores da saúde e os valores da economia. Acenam-nos também com uma fileira económica com um potencial brutal, acenam-nos com milhões. Tem que haver politicamente uma escolha muito clara entre qual é o valor predominante ou qual é o valor que predominantemente se pretende proteger.
Sobre a cannabis, disse há pouco tempo que não tinha ainda uma posição fechada. Já tem?
Não tenho, exactamente por isto. Continuamos a ter relatos e relatórios contraditórios relativamente à bondade ou aos outcomes de experiências regulatórias, quer na Europa quer noutros países do mundo. E ainda há relatórios que nos dão conta de um aumento de perturbações a nível da saúde mental dos jovens, em uso mais precoce, um impacto na violência, na sinistralidade rodoviária e outros que diziam que é a maior das maravilhas. Isto acontece porque há um viés ideológico na produção destes relatórios. Todos eles são muito inquinados. É muito difícil encontrar alguma coisa verdadeiramente objectiva.
Quanto é que o Orçamento do Estado devia reservar para o combate às dependências? Já nem falamos só de drogas, mas das dependências em geral.
Como sabem, fui presidente do IDT. No pico de financiamento do IDT tivemos cerca de 75 milhões de euros por ano. Depois houve a criação do SICAD e a passagem das unidades de terreno para as ARS. Houve um fragmentar deste orçamento em seis partes e todas somadas nunca chegaram nem perto dos 75 milhões. Agora que estamos a reconstituir e juntar outra vez estas peças todas ainda não sei qual é o orçamento que vamos ter.
Seria uma decisão também para o próximo Governo.
Sim e seria importante que houvesse aqui também um sinal de reforço para termos a capacidade de recrutar mais profissionais, porque é a grande carência que temos.
Voltando aqui à situação de Lisboa e do Porto, acha que deveriam ser abertas e mais rapidamente mais salas de consumo assistido?
A prioridade é oferecer tratamento atempado sem constrangimentos, sem lista de espera a todos aqueles que o queiram. Podemos abrir 20 salas de consumo vigiado, mas se não tiverem saída as pessoas acumulam-se lá, eternizam-se nos seus consumos. Nós temos que oferecer alternativa. Mais importante do que abrir mais espaços de consumo vigiado ou a par da abertura de outros espaços de consumo vigiado, a prioridade tem que ser reforçar a capacidade de tratamento, em comunidades terapêuticas, em ambulatório, nas várias modalidades.
Depois há outras respostas que precisamos também de ter de forma mais eficaz. Uma delas é o conhecimento sobre os produtos que circulam, reforçar o testing para saber o que é que as pessoas andam a consumir. Há riscos muitíssimo significativos, nomeadamente ocasionados pelas novas substâncias psicoactivas, como opióides de síntese que estão a aparecer.
Em relação a outro tipo de dependências, como a adicção à Internet, aos ecrãs, o que é que pode ser feito?
Estamos no advento de uma determinada realidade e de uma mudança até geracional na utilização destas tecnologias. É importante trabalhar isto através da literacia, da informação e de um trabalho preventivo e algum controlo que pode ser exercido pelas próprias operadoras de comunicações móveis, como o surgimento de um pop-up que ao fim de determinado tempo aparece no telemóvel ou no computador. Isto é suficiente para as pessoas pararem e reflectirem um pouco.
Mas para isso, é preciso que tenham um incentivo, ou sejam obrigadas. Está a convidar o poder legislativo a agir?
Exactamente. As próprias operadoras não vão lá por boa vontade. Olhe a questão do álcool. Temos bebidas alcoólicas disparatadamente baratas em Portugal. Não é admissível que haja vinho nos supermercados a preço mais baixo do que uma garrafa de água, porque esse é o vinho que dependentes ou pessoas mais vulneráveis ou jovens vão beber.
Era importante que houvesse uma política fiscal e isso passa, por exemplo, pelo estabelecimento de um preço mínimo por unidade de álcool. Para isso é necessário vontade política.
É importante priorizar. Começámos por falar de uma situação que é perfeitamente desastrosa ou que tende a tornar-se cada vez mais desastrosa. Temos que intervir aí. Temos os desafios que nos são colocados por novas tecnologias. Temos que lá ir.
Sobre o álcool, qual é a sua opinião sobre festivais de música e festas académicas patrocinados por marcas de cerveja?
Penso que é capaz de inferir qual é a minha opinião acerca disso.
Devia ser proibido?
Sim, devia ser, e, sobretudo, os patrocínios em manifestações desportivas. Temos uma omnipresença das bebidas alcoólicas em tudo. Há gatilhos e formas subliminares de estimular o consumo em tudo. Não há supermercados nenhum que não tenha uma ilha de promoções e com bebidas alcoólicas a preços de saldo. Felizmente, parece haver menos pessoas a beber. A má notícia é que aqueles que bebem o fazem disparatadamente.
Disse que tinha sido convidado a fazer a instalação do novo ICAD. Vai continuar à frente deste organismo durante quanto mais tempo?
Não será necessariamente durante muito mais tempo. Estou a aproximar-me da idade da reforma e não ficarei muito tempo. Espero ter a possibilidade de concluir este processo de fusão. Desde 1997 que tenho responsabilidades nacionais nesta área. Tem sido uma felicidade, uma grande quantidade de desafios. O desafio do vale de Alcântara é mais um que abraço com gosto, mas está na altura de pensar em outros responsáveis que venham tomar conta desta área.
Se deixasse hoje as funções, e comparando com 1997, como é que está a situação no que diz respeito à droga? Está ligeiramente melhor ou igual?
Eu penso que está francamente melhor. Em 1999, quando foi aprovada a primeira estratégia nacional de luta contra a droga, havia pelo menos 100 mil utilizadores problemáticos de heroína predominantemente injectável, 1% da população portuguesa.
Hoje em dia, mesmo com este recrudescimento e com esta grande visibilidade de pessoas muito desorganizadas, muito expostas no espaço público, a estimativa nem se aproxima da metade desse número. Tínhamos na altura 350 mortes por overdose por ano. Agora, andamos nos 70-80.
Valeu a pena todo este percurso.