Pedintes

Tenho trabalho, seremos felizes por cá, sem poluição e sem pressas, sem trânsito e sem fumo.

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O telefone tocou. A São disse à Alexandra que já não voltava para Lisboa, o presidente da junta tinha-a visitado e oferecera-lhe emprego, aceitei, vou ficar aqui com a Ana. Temos casa, cinco galinhas e ovos frescos, tenho trabalho, seremos felizes por cá, sem poluição e sem pressas, sem trânsito e sem fumo. A Alexandra, quando pousou o auscultador, soltou um soluço. O Calvo nunca a tinha visto vulnerável, era uma mulher repleta de tantas coisas que não parecia vacilar em nenhuma situação, por mais grave ou triste que fosse. Porém, o soluço não passou disso, foi um choro embrionário que não chegou a nascer. A Alexandra passou a mão pelo cabelo para prender uma madeixa atrás da orelha, suspirou, dizendo que precisava de caminhar um pouco. Antes de sair, com a porta da rua entreaberta, e sem voltar a cabeça, acrescentou: “Na missa do passado domingo, olhei para as pessoas de outra maneira, já não era só a comunhão que eu via, o enlevo da entrega a um mistério como sempre olhei para esse momento, a sensação de que somos frágeis e dependentes de uma só palavra para nos salvarmos, vi também outro tipo de sentimento que conscientemente sempre ignorei: somos todos pedintes, praticamos o exercício das mãos estendidas. Há os que pedem nas ruas o pão de cada dia porque não têm o que comer, há os que pedem nas igrejas e que andam a comer a comida dos que pedem nas ruas, suplicando ao Senhor um aumento do repasto nosso de cada dia com mais e mais e mais e mais e mais. Pedem um banquete e dão umas migalhas aos pobres para beneplácito da sua consciência cristã. Tratam Deus como um empregado de mesa, traga-me um café, ou génio da lâmpada, queria dinheiro, muito dinheiro, saúde, é claro, chuva no campo para que as couves se alevantem, e, já agora, que a vizinha de cima seja atingida pela justiça divina e se engasgue e sufoque e morra estendida no chão da cozinha com os olhos esbugalhados de dor e de remorso. Nunca tratei Deus assim, mas sinto-me fraquejar. Também eu sou tentada pela pedinchice. Acho que vou entrar na igreja e, pela primeira vez, vou pedir alguma coisa.” Dito isto, saiu.

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