A legislação europeia tem falhado na protecção dos direitos das crianças ao permitir que indivíduos nesta faixa etária estejam expostos a produtos químicos nocivos no quotidiano, sugere um relatório da Rede Internacional dos Direitos da Criança (CRIN) divulgado nesta segunda-feira.
“Se a União Europeia não avançar de forma eficiente na proibição de produtos químicos nocivos enquanto tem a oportunidade para o fazer, estará efectivamente a abrir caminho para que crianças sejam afectadas, [e a ser] cúmplice nas violações de direitos associadas a uma regulamentação incompleta. Como tal, a protecção dos direitos das crianças deve ser explicitamente incorporada na legislação e em políticas para substâncias químicas na União Europeia”, refere a conclusão do relatório.
O documento sublinha que a legislação europeia dedicada à regulação de substâncias químicas raramente se ocupa da exposição infantil – e “muitas vezes nem sequer menciona” as crianças. Contudo, frisa o relatório, os Estados-membros comprometeram-se a respeitar os direitos das crianças tanto na Carta dos Direitos Fundamentais como na própria Convenção das Nações Unidas.
Entre os compostos químicos referidos no documento, estão as substâncias perfluoroalquiladas (PFAS) e os pesticidas, produtos que podem estar presentes nos alimentos, na água, nos brinquedos e até em artigos para bebés (têxteis, por exemplo). O relatório não só colige diferentes estudos que estabelecem o risco destes compostos para a saúde humana, como também analisa a moldura legal europeia para estes produtos, mostrando as lacunas que, segundo a CRIN, deixam expostas as crianças e jovens residentes nos Estados-membros.
Na União Europeia, refere o relatório, aproximadamente 200 milhões de toneladas de substâncias químicas perigosas são consumidas anualmente. Estima-se que cerca de 100.000 produtos sintéticos estejam no mercado. Só 500 desse total estão extensamente caracterizados e aproximadamente 70.000 continuam pouco conhecidos.
Ftalatos e PFAS
Um documento elaborado em 2022 pelo HBM4EU, um projecto financiado pela União Europeia, estima que 17% das crianças e jovens europeus estavam em risco de alta exposição a misturas de ftalatos, um “cocktail” químico que está associado a problemas reprodutivos e de desenvolvimento. O estudo considera “crianças” todos os indivíduos com menos de 18 anos — ou seja, incluem adolescentes e jovens nesta designação genérica.
Os ftalatos constituem uma família de produtos sintéticos utilizados para os mais variados fins na indústria e na produção de bens de consumo. Os tipos mais comuns de ftalatos são usados como amaciadores, com o objectivo de tornar os plásticos menos rígidos e mais longevos.
“Devido à sua utilização generalizada, os ftalatos podem ser encontrados em quase toda a parte no ambiente. Nem todos os ftalatos foram estudados exaustivamente, mas há provas de que alguns deles são nocivos para a nossa saúde, uma vez que podem, por exemplo, interferir com os nossos sistemas hormonais e causar alergias. Consequentemente, a utilização de determinados ftalatos já está regulamentada tanto na Europa como a nível mundial”, refere a página da Agência Europeia de Produtos Químicos (ECHA, na sigla em inglês).
A organização recorda, contudo, que Bruxelas prometeu rever a legislação sobre substâncias químicas no âmbito do Pacto Ecológico Europeu, mas “tem adiado revisões muito necessárias de regulamentações essenciais, como o REACH”. E exorta “os actuais e futuros funcionários da UE a empenhar-se para pôr fim às violações graves dos direitos das crianças, comprometendo-se a trabalhar para uma UE mais forte na legislação sobre produtos químicos”.
A CRIN decidiu publicar este relatório “num momento crucial em que casos de poluição química estão a ser descobertos em toda a Europa”. A organização refere-se ao trabalho de um consórcio de investigação e jornalismo que divulgou, em 2023, um mapa assinalando múltiplos locais europeus contaminados por PFAS.
As PFAS são substâncias persistentes — ou seja, que não se degradam facilmente — que contaminam a água e o solo, podendo acumular-se nos tecidos vivos. É por isso que são informalmente chamados “compostos químicos eternos”, uma vez que são contaminantes de difícil remoção. Vários estudos estabelecem uma associação entre estes poluentes e riscos para a saúde humana.
“Muitas PFAS têm-se demonstrado tóxicas para a saúde humana. Várias [destas substâncias] têm sido associadas a diversos impactes negativos para a saúde humana, incluindo níveis aumentados de colesterol, redução do peso do bebé à nascença, efeitos no sistema imunitário, risco acrescido de cancro e perturbação da hormona tireoideia”, refere um relatório publicado em Junho de 2022 pelo HBM4EU.
A União Europeia já anunciou que considera banir as PFAS em 2026, ou no ano seguinte. A Alemanha, a Dinamarca, a Holanda, a Noruega (país que não faz parte da UE) e a Suécia são os países responsáveis pela redacção da proposta. Ambientalistas referem a existência de um forte lobby da indústria química. Entre as empresas afectadas por estas possíveis novas regras, estão nomes conhecidos como BASF, 3M, Bayer, Solvay, Merck KGaA e Synthomer.
Com o objectivo de mobilizar a opinião pública em torno de políticas mais agressivas contra as PFAS, diferentes líderes europeus participaram recentemente numa campanha coordenada pelo Gabinete Europeu do Ambiente (EEB, na sigla em inglês). Esta agência convidou 11 figuras políticas a fazer uma análise sanguínea para testar a presença no sangue de diferentes PFAS. Todos obtiveram um resultado positivo.
“Estes poluentes estão em todos os lugares, da água que bebemos ao ar que respiramos. Estão mesmo dentro dos nossos corpos. Ninguém está imune. Mas há um grande desconhecimento sobre as PFAS e por isso resolvemos fazer esta campanha envolvendo líderes — para mostrar que isso também os afecta directamente. Eles são as pessoas que estão mais bem posicionadas para tomar decisões para nos protegerem”, afirmou na ocasião ao PÚBLICO Tatiana Santos, responsável pela regulação de substâncias químicas no EEB.