As temperaturas médias à superfície da Terra podem já ter ultrapassado o perigoso limite dos 1,5 graus Celsius, sugere um controverso estudo publicado esta segunda-feira na revista científica Nature Climate Change. E as más notícias não param por aí: o termómetro planetário pode ultrapassar os 2 graus Celsius de aquecimento global até ao fim desta década, segundo o mesmo artigo.
Por outras palavras, as conclusões do estudo indicam que a janela de oportunidade para limitar o aquecimento da Terra abaixo de 1,5 graus Celsius pode já estar fechada. O Acordo de Paris, aprovado por quase 200 países em 2015, ambiciona precisamente limitar o aumento das temperaturas globais a 1,5 graus Celsius em relação ao período pré-industrial.
“Isto tem de ser levado muito a sério pelo IPCC [Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas]”, disse o cientista Malcom McCulloch, primeiro autor do estudo, numa conferência de imprensa virtual. McCulloch é investigador no Instituto Oceanográfico da Universidade do Oeste da Austrália.
Vários cientistas que não estiveram ligados ao estudo já reagiram ao artigo da Nature Climate Change, afirmando, de um modo geral, que os dados apresentados devem ser interpretados com cautela.
Os autores calcularam estas projecções recorrendo a um organismo marinho capaz de viver séculos e que, por isso, pode funcionar como uma “máquina do tempo”: a esponja Ceratoporella nicholsoni. O esqueleto rígido desta espécie proporcionou os investigadores um “arquivo” natural repleto de registos térmicos, o que lhes permitiu detalhar as temperaturas oceânicas ao longo dos últimos 300 anos.
Os esqueletos da Ceratoporella nicholsoni possuem características químicas únicas, uma vez que acumulam dois importantes “ingredientes”: o estrôncio e o cálcio. O rácio entre estes dois elementos químicos funciona como um “termómetro histórico”. Nos períodos mais quentes, os valores desse rácio são mais baixos, e vice-versa.
Assim, usando as esponjas como “máquinas do tempo”, os autores conseguiram identificar variações de temperatura tão baixas como uma décima de grau Celsius – um nível de precisão mais elevado do aquele demonstrado noutros métodos, como o da reconstrução de temperaturas oceânicas a partir de corais.
Os cientistas estudaram exemplares desta espécie recolhidos na costa caribenha em zonas de baixa profundidade (entre 30 e 90 metros). As Caraíbas são consideradas uma região relevante na troca de calor entre a atmosfera e o oceano – ou seja, os organismos marinhos que ali vivem podem ser usados como proxy, garantem os autores do estudo, para uma melhor compreensão das alterações climáticas.
Um dado proxy é aquele que se apresenta no lugar dos dados em que estamos realmente interessados, mas que, por alguma razão, não estão disponíveis. Como não existem séries históricas das temperaturas do oceano ao longo dos últimos 300 anos, e sendo as águas salgadas uma peça-chave para a regulação da temperatura planetária, os autores recorreram à “memória química” dos esqueletos da Ceratoporella nicholsoni.
Não é uma máquina do tempo perfeita, mas é uma aproximação possível. “Não há proxies perfeitos”, disse Malcom McCulloch na conferência de imprensa virtual organizada pelo grupo Nature.
“A singularidade das amostras e locais da investigação permitiu aos autores documentar um registo detalhado da temperatura do oceano a longo prazo desde 1700, garantindo uma reconstrução mais precisa do aquecimento dos oceanos desde a era pré-industrial e melhorar o conhecimento da sua extensão e contribuição para o aquecimento global”, explica investigador chinês Wenfeng Deng (que não participou no estudo), numa análise publicada na mesma edição da Nature Climate Change.
O estudo revelou que as temperaturas à superfície do oceano já aumentaram pelo menos 1,5 graus Celsius desde 1860 – ou seja, desde a era pré-industrial. Estes registos oceânicos foram posteriormente cruzados com dados da temperatura à superfície da Terra, fornecendo novas estimativas do aquecimento global. Os valores obtidos excedem as estimativas prévias do IPCC, sugerindo que os termómetros do planeta estão a subir a um ritmo muito mais rápido do que imaginávamos.
Interpretar dados com cautela
O estudo da Nature Climate Change não desperta unanimidade na comunidade científica. Gavin Schmidt, cientista da agência espacial norte-americana (NASA), afirma que temos de ser cuidadosos ao considerar um único proxy – neste caso, as esponjas –, oriundo de uma parte específica do oceano Atlântico, como algo representativo da média global.
“As estimativas das temperaturas médias globais antes de 1850 requerem múltiplos proxies com uma variação regional tão ampla quanto possível. Dessa forma, alegações de que os registos de um único proxy podem definir com segurança o aquecimento médio global desde os períodos pré-industriais são provavelmente exageradas”, afirma Gavin Schmidt, director do Instituto Goddard de Estudos Espaciais da NASA, citado numa nota de imprensa.
Opinião semelhante tem Richard Allan, professor de Ciências Climáticas na Universidade de Reading, no Reino Unido. Para Allan, este estudo só vem corroborar o gigantesco conjunto de dados científicos que confirmam não só o aquecimento global causado pela actividade humana, mas também alertam para a urgência de reduzirmos drasticamente a emissão de gases com efeito de estufa.
“Utilizar esta estimativa regional para recalibrar as estimativas do aquecimento global acima do perigoso limiar de 1,5 graus Celsius pode ser uma manobra de diversão, uma vez que as alterações climáticas já se aproximam rapidamente ou já se encontram neste ponto, independentemente da combinação de provas utilizadas”, refere o docente britânico.
Durante a conferência de imprensa, quando questionados sobre a validade global de dados relativos às Caraíbas os autores do estudo lembraram que “os oceanos estão conectados” e que, portanto, eventos marinhos locais podem ter repercussão planetária.
Todos os cientistas citados na nota de imprensa, assim como os autores do estudo, são unânimes no que toca à urgência da acção climática. “A mensagem que devemos levar para casa é a de que estamos hoje [num mundo] muito mais quente do que na era pré-industrial”, disse o paleo-oceanógrafo Amos Winter, co-autor do estudo, na conferência de imprensa.
“Todas as pessoas têm um papel a desempenhar agora – nós só temos um planeta”, concluiu Amos Winter, professor da Universidade de Indiana, nos Estados Unidos.