“O grito dos agricultores não é de extrema-direita”
Especialistas dizem que a direita radical está a tentar aproveitar-se dos vários protestos dos agricultores. Mas muitos recusam. “Somos democratas”, diz representante de agricultores alemães.
Vários partidos da direita radical populista estão a tentar aproveitar-se das manifestações dos agricultores pela Europa, no que tem sido descrito como uma tentativa de aproveitamento de clivagens e até de infiltração da direita radical e extrema nos protestos.
Na Alemanha, havia autocolantes da Alternativa para a Alemanha em alguns tractores, e em alguns protestos houve participação de movimentos extremistas. Em França, o cabeça de lista da União Nacional às europeias, Jordan Bardella, tem calçado botas impermeáveis para visitas a explorações agrícolas e martelado que os agricultores e o seu partido têm uma luta comum.
Na Polónia, o partido de extrema-direita Confederação tem tentado aproveitar os protestos dos agricultores (por causa dos cereais ucranianos) para tentar reerguer-se de um resultado pior do que o que esperavam nas eleições de Outubro. E em Bruxelas, diz o Financial Times, uma manifestação foi organizada pelo MCC Brussels, um centro de estudos apoiado pelo primeiro-ministro da Hungria Viktor Orbán.
A meses das eleições europeias, muitos temem que esta proliferação de protestos ajudasse os partidos de direita radical e extrema. A tentativa de infiltração e instrumentalização parece estar – pelo menos até agora – a ter um sucesso limitado.
“Não queremos grupos extremistas e outros grupos radicais com um desejo de derrubar o governo nas nossas manifestações”, disse o presidente da Associação de Agricultores Alemães, Joachim Rukwied, ao diário de grande circulação Bild. “Somos democratas.”
Também na Roménia, o país com mais agricultores em relação ao total da população, o professor de ciência política e administração pública na Universidade de Bucareste Claudiu Craciun explicou à Al-Jazeera que os partidos populistas estão a tentar “não só usar os protestos, mas alimentá-los”, num esforço que dura há vários meses de partilha de publicações nas redes sociais de protestos nos Países Baixos ou Alemanha.
Mas quando se soube que o pedido para um protesto em Bucareste fora apresentado por um advogado próximo de uma senadora de direita radical, Dinana Sosoaca, apareceram muito poucos manifestantes. Estavam previstos cem tractores; apareceu apenas um.
Em França, país que tem o sector agrícola mais importante da União Europeia, a União Nacional está a tentar reclamar o espaço da ruralidade, a ideia de uma França de antigamente, um imaginário de trabalho, numa tradição de que “as elites são parasitas e o país deve ser conduzido por um diálogo directo entre líder e povo”, disse ao diário Le Monde Nicolas Lebourg, historiador da Universidade de Montpellier.
A tendência de aproveitamento da polarização “usando clivagens existentes como o rural versus urbano” existe também na Alemanha, disse Johannes Kiess, sociólogo especialista em extremismo de direita na Universidade de Leipzig, à estação de televisão norte-americana CNN. “A AfD está a tentar lançar lenha para a fogueira do debate para provocar danos à imagem das instituições democráticas e os seus processos, e mais importante, do actual governo.”
O partido utiliza qualquer crise para seu proveito, diz Kiess, “por exemplo a pandemia, a guerra contra a Ucrânia” – e “às vezes resulta bem, outras vezes não”.
AfD votou contra subsídios aos agricultores
Kiess sublinha, tal como outros peritos, que no caso alemão a AfD não apoia, no seu próprio programa, os interesses dos agricultores. A AfD, marcadamente neoliberal, é “contra subsídios para a transformação verde, que podem ajudar os agricultores a ajudar os seus negócios para os tornar mais sustentáveis ambientalmente e economicamente”, lembrou Kiess. “Na verdade, a AfD votou junto com a CDU [o maior partido na oposição] e a coligação no Governo para a abolição dos subsídios em causa.”
E a maioria dos agricultores da Alemanha votarão na direita conservadora, mas não radical, acrescentou Kiess.
Em França o cenário eleitoral parece ser semelhante. Nas eleições presidenciais de 2022, Marine Le Pen teve proporcionalmente menos votos entre os agricultores do que entre a população em geral, segundo uma sondagem Ifop/FNSEA citada agora pela agência Reuters.
O apoio europeu à agricultura francesa na Política Agrícola Comum faz com que o voto dos agricultores seja – ainda que tendencialmente conservador – mais pró-europeu do que a média.
Na manifestação de Bruxelas, Bram Van Hecke, um agricultor belga que planeia concorrer nas europeias, disse que a luta não era contra medidas contra as alterações climáticas mas sim contra legislação decidida sem ouvir os afectados. “O governo é duro quando estabelece as regras, o mercado é duro, e a pressão subiu para um nível muito elevado”, declarou. “Mas o grito dos agricultores não é de extrema-direita. É do coração”, declarou ao Financial Times.