Sandra Milo (1933-2024), muito mais do que apenas uma fantasia de Fellini

Os papéis em Fellini Oito e Meio e Julieta dos Espíritos inscreveram-na definitivamente na história do cinema italiano, que não raras vezes objectificou o seu corpo exuberante.

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Sandra Milo em Paris em 1963 REPORTERS ASSOCIÉS/GETTY IMAGES
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No imaginário cinéfilo internacional, as memórias mais gloriosas da actriz Sandra Milo, cuja morte aos 90 anos foi anunciada na segunda-feira, são as que resultaram do seu encontro com Federico Fellini no princípio da década de 1960. Os seus papéis em Fellini Oito e Meio (1964), onde era Carla, uma das amantes do alter ego do próprio cineasta interpretado por Marcello Mastroianni, e sobretudo em Julieta dos Espíritos (1965), onde num exercício de alguma crueldade pessoal, era a projecção de um ideal feminino muito felliniano que fascinava a personagem interpretada pela própria mulher do realizador, Giulietta Masina (era ela a “Julieta”), são os que primeiro virão hoje à cabeça de muita gente à menção do nome da actriz.

Podia ter havido mais um papel, porque para Amarcord (1973) Fellini começou por pensar nela para a figura da Gradisca (outra projecção das fantasias femininas fellinianas), mas Sandra Milo declinou, por pressão do seu marido e também porque por essa altura já estava mais virada para a televisão, meio que frequentou durante décadas e que lhe deu uma enorme popularidade em Itália mesmo quando o público estrangeiro deixou de a ver em filmes.

Mas houve mais do que apenas Fellini na carreira de Sandra Milo. Houve, por exemplo, Roberto Rossellini, que ainda antes da entrada da actriz no mundo de Fellini lhe ofereceu papéis relevantes em Il Generale della Rovere (1959) e sobretudo em Vanina Vanini (1961), um dos mais mal-amados filmes do realizador de Roma, Cidade Aberta. Quando Milo trouxe do Festival de Veneza de 1965 um prémio de interpretação por Julieta dos Espíritos, o gesto correspondeu a uma reparação do mal que lhe fora feito quatro anos antes, quando Vanina Vanina sofreu tratos de polé no mesmo festival e parte da crítica não foi nada meiga na chacota que fez da actriz (chamaram-lhe "Canina Canini", trocadilho que não carecerá de tradução).

E houve também Antonio Pietrangeli, um daqueles pequenos mestres que existiam às dúzias no cinema italiano das primeiras décadas do pós-guerra. Foi este particularíssimo e genial cineasta quem descobriu Sandra Milo e lhe ofereceu o primeiro papel, ao lado de Alberto Sordi, num filme de 1955 chamado O Solteirão, tinha ela 22 anos. A Pietrangeli voltou em várias outras ocasiões, filmes magníficos e injustamente esquecidos do grande público (não-italiano, pelo menos), como Adua e le Compagne, Fantasmas em Roma ou Anúncio de Casamento – este último, chamado no original La Visita, é quase uma crítica (e, outra vez, uma reparação) do tratamento dado por Fellini ao físico exuberante da actriz, uma crítica do seu estatuto de fantasia masculina e, por extensão, do machismo italiano.

Milo desapareceu da primeira linha do cinema italiano a partir dos anos 70, quando se concentrou no trabalho em televisão, mas na década passada, a partir do momento em que já era octogenária ou quase, teve uma série de participações em filmes italianos, nalguns casos dirigidos por realizadores de certo gabarito (Gabriele Salvatores, Gabriele Muccino, Sergio Castellitto), e estava plenamente activa – os seus últimos créditos são em filmes de 2023, e conta a imprensa italiana que ainda em Dezembro passado foi vista na televisão.

A mesma imprensa que descreve Milo como mulher de uma vida sentimental tempestuosa, muito explorada pelas revistas de mexericos e um pouco para além delas, como foi sobretudo o caso da sua ligação com Bettino Craxi, histórico líder do Partido Socialista Italiano. Era uma das últimas sobreviventes de uma época realmente dourada do cinema italiano, e a sua morte deixa-nos um pouco mais longe desse tempo.

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