Decretos chumbados sobre identidade de género “podiam ajudar a salvar vidas”. As reacções aos vetos de Marcelo
Directores escolares concordam com a decisão do Presidente, mas associações LGBT+ temem consequências para a saúde mental das crianças trans e não-binárias. Decisões só na próxima legislatura.
“Os direitos fundamentais não se negoceiam.” Isabel Moreira, deputada do Partido Socialista (PS) que promoveu o despacho sobre como assegurar o cumprimento da lei da autodeterminação da identidade de género na escola, vetado esta segunda-feira por Marcelo Rebelo de Sousa, tem dificuldade em compreender os argumentos apresentados pelo Presidente: “Uma criança trans tem que ser protegida na escola” porque esse é um direito fundamental. “Se for mãe de uma criança trans, os outros pais não têm que ser ouvidos para que ela seja protegida."
O veto do chefe de Estado apanhou de surpresa a socialista, que o assumiu ao P3: “Este é o Presidente que promulgou a lei que consagrou este direito fundamental”, aponta. O que mudou desde então? “Com a ascensão da extrema-direita, vem crescendo uma campanha de desigualdade e desinformação em Portugal”, teoriza Isabel Moreira: “Penso que o Presidente terá sido atingido por essa desinformação, não encontro outra explicação.”
No centro da polémica estão dois diplomas. Um deles gizava as linhas com que as escolas deviam implementar a lei que reconhece o direito à identidade de género, que implica a implementação de medidas de protecção para os membros da comunidade de pessoas transgénero e que proíbe a discriminação contra estes. O segundo diploma abriria a possibilidade de escolher um nome neutro no registo civil.
Ambos dizem respeito a uma lei que está consagrada há seis anos: a Lei n.º 38/2018, de 7 de Agosto, que estabelece o direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género, assim como o direito à protecção das características sexuais de cada pessoa. A existência desse diploma não está em xeque, mas os vetos de Marcelo Rebelo de Sousa adiaram para a próxima legislatura os próximos passos.
"Não percebemos a pressa"
A decisão presidencial é elogiada pela Associação Nacional de Directores de Agrupamentos e Escolas Públicas (ANDAEP). “Não percebemos qual foi a pressa de aprovar esta lei sem ter existido um amplo debate com encarregados de educação, alunos, professores e directores de escolas”, defendeu, em declarações ao P3, o presidente daquele organismo, Filinto Lima: “Os deputados fizeram tábua rasa das opiniões de quem está diariamente na escola. Foi um mau princípio.”
Numa exposição ao presidente da Assembleia da República, o Presidente da República argumentou que o diploma sobre a aplicação da lei da identidade de género nas escolas “peca por uma quase total ausência” dos encarregados de educação “na implementação do regime legal”. É uma falácia, considera Júlia Pereira Lima, da associação Anémona: na formação da lei original de 2018, “foram ouvidos sectores muito alargados da sociedade civil”. “Tenho sido sempre muito crítica desta lei, mas era muito importante que ela fosse aprovada, porque permitiria identificar mais boas práticas.”
No que diz respeito à adopção de nomes neutros, Marcelo considerou que o diploma “vem permitir que uma pessoa que decida mudar de género possa fazer registar unilateralmente essa alteração em assentos de casamento dessa pessoa ou de nascimento de filhos”, sem que o cônjuge ou o progenitor do filho seja informado.
Vetos criarão "muito stress"
Mas, do outro lado do debate, a leitura é outra. Jo Matos, dirigente da Rede Ex-Aequo, considera que o novo diploma protegeria as pessoas transgénero e não-binárias de se depararem constantemente com o “deadname” — o nome que lhes foi atribuído antes da transição de género. “É uma coisa bastante violenta", explicou ao P3, e a promulgação seria “um ponto positivo também para a saúde mental da pessoa”.
Esse é também o argumento de António Vale, da Associação de Mães e Pais pela Liberdade de Orientação Sexual e Identidade de Género (Amplos), de que o veto vai “criar muito stress sobre as crianças e os jovens”: “Esta população tem uma taxa de suicídio muito elevada e estes esclarecimentos poderiam ajudar a salvar mais algumas vidas.”
É que não basta que a lei de 2018 permaneça de pé, avisaram os dirigentes de associações LGBT+. Quando o Tribunal Constitucional a chumbou, em 2021, houve necessidade de intervir nas escolas e junto dos pais para lembrar que a inconstitucionalidade não dizia respeito ao seu conteúdo — só ao facto de os termos não poderem ser definidos através de um regulamento administrativo. “Houve situações em que o Direcção-Geral dos Estabelecimentos Escolares teve que explicar a directores escolares que a lei estava em vigor e que era para ser aplicada”, recordou António Vale. Esse é o mesmo ruído que as associações temem que regresse com os vetos de Marcelo.