“Perfeitamente imbecil”. Rui Chafes critica terem posto a sua escultura a falar na Av. da Liberdade
Obra do escultor é uma das 22 com narrativas, escritas por Nilton, interpretadas por figuras do espectáculo. Chafes não concorda com intervenção e pondera acção legal. Junta desvaloriza.
O escultor Rui Chafes confessa-se surpreendido com a inclusão da sua obra “Sou como tu” no projecto “História com Voz”, promovido pela Junta de freguesia de Santo António e pela Câmara Municipal de Lisboa e através do qual várias estátuas e esculturas situadas naquela zona da cidade são apresentadas por figuras das artes e do entretenimento em ficheiros áudio ouvidos através do smartphone. Chafes tomou conhecimento da intervenção através de amigos e não gostou do que ouviu.
“Fiquei surpreendido, ninguém me consultou ou pediu autorização. Ainda para mais, trata-se de uma ideia muito infeliz, com um texto absolutamente medíocre, sem graça nenhuma. No fundo, isto é vandalismo institucional, como se tivesse feito um graffiti”, acusa o artista plástico, que diz estar a ponderar, juntamente com pessoas “da comunidade artística”, a tomada de uma posição. A qual poderá passar por uma acção legal. Em causa estará, não apenas a preservação seus direitos como autor da peça, como uma “questão de dignidade”. A junta diz-se pronta a dialogar.
A escultura de Rui Chafes, colocada em 2008 frente ao número 224 da Avenida da Liberdade, é uma das 22 que fazem parte do projecto dinamizado pela junta de Santo António, inaugurado no passado dia 20 de Janeiro, e através do qual se “pretende, de forma divertida, bem-humorada e historicamente correcta, dar voz às estátuas desta freguesia de Lisboa”, com as obras a contarem “um pouco da sua história em discurso directo”.
Histórias essas reescritas pelo humorista Nilton e lidas por uma das figuras envolvidas no projecto, que custou 50 mil euros. Entre os envolvidos nesta ideia original do presidente da junta, Vasco Morgado (PSD), emprestando a sua voz, estão Herman José, Júlio Isidro, Ricardo Carriço, David Fonseca ou Marina Mota e Fernando Mendes, para além dos próprios Morgado e Nilton.
As obras de arte pública situam-se em vários locais da freguesia, mas a grande maioria concentra-se ao longo da Avenida da Liberdade, onde cerca de uma dezena e meia é incluída no projecto. Para escutar as performances, basta aos passantes apontarem a câmara do seu telefone para o código QR que se encontra numa placa ao lado da estátua ou escultura. Quando isso acontece, abre-se uma página no navegador do smartphone e, pouco depois, recebe-se uma chamada da voz que calhou a essa obra. No caso da de Chafes, a dramatização cabe à radialista e locutora Joana Cruz.
“Sou como tu… Não, por acaso, não sou! Sou a Joana Cruz, locutora e apresentadora de rádio. No fundo, sou contribuinte como todos nós. Mas não vamos falar mais disso, se não ficamos a chorar…”, começa assim a narrativa de Nilton lida, num registo burlesco, por Cruz, que continua: “Deixei o carro em quatro piscas, a EMEL anda aí. Já agora, querem uma dica para não vos roubarem a viatura? Estacionem o carro sem ticket, ele é bloqueado e, assim, assim já ninguém o leva”, diz, num texto que, mais à frente, faz ainda referências à imensa diversidade de cada pessoa, “porque hoje em dia, ninguém é igual a ninguém, partindo do princípio que há pelo menos LGBT…IKEA.. mais XPTO turbo-diesel...”. E continua.
Ora, Rui Chafes não achou graça nenhuma ao que era suposto tê-la. “Isto é um ataque, não só à obra, como um todo, como à dignidade das pessoas que dela fruem. Trata-se de um texto perfeitamente imbecil. Muito medíocre, com uma chalaça de mau gosto. Se ainda tivesse algum tipo de valor espiritual, que tivesse o cuidado de enriquecer as pessoas, seria mais ou menos aceitável”, afirma ao PÚBLICO o artista plástico, que diz ser esta uma questão com “implicações legais, mas também filosóficas, de dignidade e de decência”.
Pior, considera Chafes, a intervenção realizou-se sem que tivesse havido qualquer cuidado por parte da junta em saber a sua opinião. “Isto foi feito sem qualquer consentimento meu. A abordagem não poderia ser a mesma que tiveram em relação às estátuas do Marquês de Pombal, Alexandre Herculano ou Pinheiro Chagas. Não estou morto, sou um artista contemporâneo e vivo em Lisboa”, afirma, contestando ainda a sua inclusão no projecto, por a sua obra ser “uma escultura e não uma estátua”.
O artista diz que o facto de existir esta intervenção, acedível através de um código QR colocado ao lado da obra, pode transmitir a ideia errada de que ele é autor ou avaliza o áudio. “Teriam sempre de pedir autorização. Sinto-me pessoalmente vandalizado”, diz, revelando ao PÚBLICO estar a estudar que acção tomar, não afastando a possibilidade de agir judicialmente. “Há pessoas da comunidade artística preocupadas com isto”, disse, sem querer revelar quais.
Já Vasco Morgado admite não ter consultado o artista, mas desvaloriza a questão. “Trata-se de uma criação sobre outra criação que está no espaço público. É uma explicação da escultura, nada mais”, afirma o autarca, dizendo-se aberto a ouvir Chafes. “Este projecto está a ser um sucesso. Temos recebido muitos elogios”.