O barulho das crianças na rua

Circulávamos, livremente, entre uma casa e outra. Às vezes, descalços, quando o calor apertava. Brincávamos nos pátios das duas casas, mas também ficávamos horas sentados à porta, a conversar.

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Cresci numa rua em paralelo, sem passeios e onde a porta das casas de ambos os lados dava directamente para a mesma faixa onde passava, amiúde, um autocarro e alguns carros. Nada que me impedisse de andar sempre por ali, a circular entre a minha casa e a casa da minha avó, a poucas dezenas de metros, onde os meus primos passavam o tempo depois da escola ou os dias de férias, à espera que os pais terminassem o dia de trabalho para os irem buscar.

Circulávamos, livremente, entre uma casa e outra. Às vezes, descalços, quando o calor apertava. Brincávamos nos pátios das duas casas, mas também ficávamos horas sentados na soleira da porta, a conversar.

E íamos para a escola a pé. Pelo meio de uma bouça, para cortar caminho. Um espaço verde desarranjado e que tinha, a determinada altura, um pequeno declive de terra que vencíamos numa enorme correria, porque era uma aventura, e por ali continuávamos, atentos às raízes que abaulavam o solo, numa batalha pessoal para conseguir vencer o caminho sem nos estatelarmos no chão.

Saltávamos à corda e jogávamos à macaca, desenhando os quadrados do jogo no chão e usando como patela um qualquer pedaço de caco que encontrássemos perdido por ali. E juntávamos pedras e pedaços de plantas, tudo sem lavar as mãos, para as dispor em cima do muro, como produtos à venda, em cima daquela banca de faz-de-conta.

A partir do 5.º ano, as amizades diversificaram-se, e assim que a escola terminava e os trabalhos de casa estavam feitos, saía e punha-me a caminho da casa da Joana, onde ficávamos a brincar até se anunciar que o jantar se aproximava e era tempo de ir embora. O caminho era sempre feito através daquelas ruas sem passeios, sem telemóvel, com um simples recado de “vou à Joana” atirado à mãe, que ficava em casa amarrada aos arranjos de costura que lhe ocupavam o tempo, quando não estava a cozinhar, limpar ou lavar.

A pé ia também depois para casa da Paula e da Ângela, já noutras freguesias, uns bons quilómetros de caminho. Era uma miúda, mas já teria uns 12, 13 anos. Era mais do que capaz de me desenvencilhar sozinha.

As ruas que eu percorria nessa altura não mudaram muito. A maior parte continua sem passeios. O autocarro deixou de passar à porta da minha antiga casa, mas o volume de carros aumentou. Tirando isso, as coisas mudaram pouco. Excepto para os miúdos.

Na 4.ª classe eu tinha a responsabilidade, várias vezes, de deixar na escola o filho da vizinha do lado que entrou para o 1.º ano nessa altura. Ele lá ia ao meu lado, pelo meio da bouça, com menos correria, porque ele era pequeno e eu já era grande, tinha 9 anos, afinal.

Quando chegou a vez de um dos meus sobrinhos ir para a escola, nos primeiros anos do século XXI, estava tudo diferente. Ele ia para a escola na carrinha do ATL, que também o ia buscar. Ao passar para o 5.º ano, recordo-me bem da insistência dele para que a mãe o deixasse ir a pé, sozinho, partilhando caminhos que outras crianças faziam também. Ela resistiu muito, até ceder um dia.

Nesse dia, comentou no café, na pausa do trabalho, que o filho tinha ido sozinho para a escola e ouviu, das mulheres à sua volta autos de desgraça como “ah, mas ele é tão bonito, com aqueles caracóis, assim sozinho, no mundo de hoje, ah, eu não deixava”. Pela descrição que fez, deve ter passado o resto do dia em pânico. Foi a primeira e única vez que ele pôde ir sozinho para a escola.

Nas traseiras da casa onde moro apenas circulam carros das imediações, das casas que ali estão ou que procuram estacionamento. Nas noites de Verão, muitas vezes, dava por mim a sorrir, por ouvir, lá fora, as vozes de crianças que andavam a brincar naquele pedaço de rua, depois de o jantar estar despachado, mas quando ainda era muito cedo para dormir. Não me recordo de as ter ouvido no ano passado. Espero que voltem, porque a rua precisa do barulho das crianças.

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