Uma formiga invadiu a savana do Quénia e os leões tiveram de mudar de dieta
Um estudo mostrou como uma espécie invasora pode transformar a ecologia de um ecossistema ao perturbar uma ligação basilar. É uma história de formigas, árvores, elefantes, leões, zebras e búfalos.
Uma formiga invasora está a penetrar nas savanas do Quénia e a substituir as formigas endémicas, que habitam as árvores dominantes da região. Este não seria um caso especial, se o impacto desta mudança não atingisse o predador de topo daquele ecossistema, o leão. Por causa da formiga, aquele felino teve de se desviar da sua presa favorita, a zebra, para começar a caçar búfalos. Esta investigação, que envolve ainda os elefantes, é um exemplo “complexo e carismático” do impacto que uma espécie invasora pode ter. E demonstra a importância de certas interacções entre espécies que são basilares para o funcionamento dos ecossistemas, avançam os autores do estudo publicado esta semana na Science.
“O estudo mostra realmente o poder de um pequeno e aparentemente inócuo insecto invasor que transforma radicalmente a paisagem da savana”, diz ao PÚBLICO Todd Palmer, ecólogo do Departamento de Biologia da Universidade da Florida, nos Estados Unidos (EUA), e um dos 20 investigadores que assinam o estudo, entre os quais Douglas N. Kamaru, primeiro autor do artigo, da Universidade do Wyoming, nos EUA, que fez muito do trabalho de campo.
A investigação foi feita em Ol Pejeta Conservancy, um parque natural protegido com 360 quilómetros quadrados (o estuário do Tejo tem 320 quilómetros quadrados), numa área de savana situada no município de Laikitia, no centro do Quénia. O parque abriga rinocerontes, leões, elefantes e outros animais icónicos, além de conter um santuário de chimpanzés salvos do mercado negro.
Todd Palmer dedica-se àquela região há algum tempo. “Este estudo demorou cerca de 30 anos, começou com a investigação da relação entre as formigas nativas da acácia e as suas árvores hospedeiras”, explica. As árvores em questão são as Vachellia drepanolobium, uma espécie de acácia africana que atinge os seis metros de altura e domina o ecossistema. Ao longo da evolução, várias espécies de acácias, tanto na América Central como em África, estabeleceram relações simbióticas mutualistas com formigas. Os espécimes de Vachellia drepanolobium, no Quénia, são habitados por formigas do género Crematogaster.
Além de espinhos, aquelas árvores têm estípulas ao longo dos ramos, que são formações inchadas que podem ser ocupadas pelas formigas. A árvore produz ainda néctar que alimenta os insectos. Por seu lado, as formigas prestam um serviço de defesa à sua árvore-casa, atacando herbívoros com mordidas e com o ácido fórmico.
“A protecção feita pelas formigas das acácias é particularmente eficaz a dissuadir a herbivoria letal feita pelos elefantes, estabilizando desse modo a cobertura arbórea das savanas ao longo de paisagens inteiras”, lê-se no artigo. Ou seja, é esta ligação profunda entre formigas e acácias que forma o pano de fundo ecológico onde as outras espécies vão medrar e se relacionar, desde o leão com a zebra, que constituem uma relação trófica mais elevada, já que aquele felino é um predador de topo, até espécies menos evidentes.
“As formigas nativas e protectoras das acácias também estão associadas à presença de outras espécies, incluindo pequenos insectos com os quais as formigas nativas vivem em associação, até a aves que fazem os ninhos naquelas árvores como estratégia para manter as suas crias e os seus ovos a salvo de predadores, como as serpentes e os roedores”, explica Todd Palmer.
Pela importância da relação entre as acácias e as formigas na constituição daquela paisagem, os autores comparam-na a outros ecossistemas importantes, que têm como base uma relação mutualista, como os corais e os seus dinoflagelados – um tipo de algas que vive nos corais, faz fotossíntese e partilha parte do seu alimento com os corais. “Já que praticamente todas as espécies na Terra participam em uma ou mais relações mutualistas, a sua quebra pode erodir a biodiversidade”, refere-se no artigo.
Quando a quebra se dá justamente no elo que sustenta a base do ecossistema, então os efeitos tomam uma dimensão maior. Foi o que aconteceu com a chegada da Pheidole megacephala, a formiga-de-cabeça-grande (numa tradução à letra do nome comum inglês da espécie).
“Foi um palpite”
Não se conhece a origem exacta da Pheidole megacephala, supõe-se que seja originária de uma ilha do oceano Índico, mas nos últimos séculos espalhou-se pelas zonas tropicais e temperadas. De qualquer forma, esta formiga tornou-se uma preocupante espécie invasora devido ao seu comportamento agressivo, capaz de expulsar os outros invertebrados, além de ter impactos na agricultura.
No caso das savanas no Quénia, a situação não é diferente. Nos últimos 15 anos, a formiga começou a invadir a região. “Nos locais onde as formigas-de-cabeça-grande encontram as acácias, elas usam o seu número para subjugar e exterminam completamente as espécies de formigas [do género] Crematogaster, matando as adultas e consumindo os ovos, as larvas e as pupas”, descrevem os autores no artigo.
Só que, ao contrário das formigas nativas, as invasoras não defendem as acácias, o que deixa as árvores desprotegidas à acção dos herbívoros, nomeadamente dos elefantes. Uma manada de elefantes vai atravessar e partir as árvores de um bosque de acácias invadido pela Pheidole megacephala cinco a sete vezes mais do que um bosque protegido pelas formigas nativas, diz o artigo. O resultado é uma paisagem onde restam uns quantos troncos despidos e campo aberto, com muita visibilidade, péssimo para os leões se esconderem das suas presas.
Foi neste contexto que os autores se lembraram de realizar as experiências que desembocaram neste artigo. “Foi um palpite”, recordou Todd Palmer. “Sabíamos que as formigas invasoras estavam a tornar as árvores vulneráveis aos elefantes, e sentámo-nos uma noite a tomar cervejas e conversámos sobre se uma paisagem mais aberta poderia tornar a caça mais difícil para os leões.”
Um mundo em mudança
Para testar aquela hipótese, a equipa fez várias experiências. Por um lado, mediu o impacto dos elefantes na visibilidade das áreas com acácias. Para isso, analisou essa visibilidade no Ol Pejeta Conservancy em zonas de acácias que já tinham sido ocupadas pelas formigas invasoras e zonas que ainda estavam livres. Através da introdução de vedações eléctricas em seis quadrados de 50 metros de lado (três em zonas invadidas e três em zonas não invadidas), que impediam a entrada de elefantes, e comparando com quadrados sem vedação, a equipa pôde avaliar o efeito dos elefantes no aumento da visibilidade da savana.
Por outro lado, os investigadores monitorizaram a movimentação das seis alcateias de leões (Panthera leo) que vivem no parque (ao todo, existem 80 felinos) – o que permitiu avaliar se a alteração dos ecossistemas estava a ter consequências na sobrevivência dos leões –, e a movimentação das manadas de zebras (Equus quagga), o ungulado de maior número do parque. A importância das zebras na dieta dos leões é enorme. Naquela região, metade das presas caçadas pelos leões são zebras, segundo os dados que a equipa armazena desde 2003.
A partir da monitorização do movimento daqueles animais, com a ajuda de câmaras instaladas no parque e muitas visitas locais, foi possível identificar e contabilizar carcaças associadas a ataques de leões. Entre Junho de 2019 e Agosto de 2020, foram identificadas 50 mortes de zebra causadas por leões dentro do perímetro do parque e geograficamente associadas a áreas com acácias. A seguir às zebras, o segundo maior ungulado morto por leões foi o búfalo (Syncerus caffer), com 31 indivíduos mortos.
A partir desta contabilização, a equipa calculou a evolução dos ataques dos leões. “De 2003 até 2020, a proporção de ataque mortais feitos por leões às zebras decresceu de 67% para 42%, já a proporção de mortes de búfalos aumentou de 0% para 42%”, lê-se no artigo. “Uma paisagem mais aberta faz com que os leões tenham mais dificuldade em caçar as zebras, já que existem menos lugares para se esconderem, e faz com que desviem a sua atenção para presas maiores e potencialmente mais perigosas como os búfalos”, explica por sua vez Todd Palmer.
Por enquanto, o número total de felinos não caiu. Mas o ecologista não sabe dizer se haverá uma mudança nas populações das duas espécies. “Não podemos prever com confiança como é que isso vai ter um impacto nas populações de búfalos, nem sabemos se uma maior dependência nos búfalos pode colocar um maior risco de morte para os leões”, adianta.
Mas, para o investigador, o estudo mostra a importância da interacção entre espécies que sustenta um ecossistema, que não têm necessariamente de ser relações de predação. Neste caso, é uma relação mutualista. “O mundo está a mudar de uma forma tão rápida…”, desabafa Todd Palmer. “Não só com as espécies invasoras, mas também com a destruição de habitat, as alterações climáticas, a poluição dos nutrientes e outros impactos, é vital que compreendamos como estas mudanças podem ter um impacto não só para as espécies, mas também para a interacção entre espécies. Na nossa abordagem à conservação, precisamos de pensar não apenas sobre preservar as espécies, mas também as suas interacções.”
Um “vilão” à solta
Jorge Palmeirim, biólogo da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, com uma vasta experiência em ecologia de mamíferos, nota que identificar aquelas interacções é um desafio. “A primeira grande dificuldade é identificar estas ligações e perceber qual delas tem um papel fundamental nos ecossistemas”, explica ao PÚBLICO. “As ligações são mais importantes quando envolvem espécies abundantes”, como é o caso da investigação feita no Quénia, em que o biólogo português não esteve envolvido.
Para o investigador, embora haja outros casos emblemáticos conhecidos de ligações que são chave para um ecossistema, a nova investigação, além de providenciar uma demonstração robusta do que está a acontecer, é especial. “Tem características interessantes e é mais complexo”, aponta Jorge Palmeirim. “Há uma alteração do mutualismo que vai levar à alteração da estrutura do ecossistema. O vilão é uma pequena formiguinha, mas os impactos chegam aos maiores vertebrados. É um caso complexo e carismático.”
Tanto Todd Palmer como Jorge Palmeirim, não têm uma resposta definitiva sobre o que fazer ao “vilão”, que vai continuar a invadir as savanas de Ol Pejeta Conservancy e a causar a destruição das acácias. Mas, para o biólogo português, este é mais um exemplo da importância de praticar uma conservação da natureza que seja abrangente e “geograficamente representativa”, principalmente quando não se conhecem as ligações que sustentam os ecossistemas que se querem proteger. “Nunca se deve assumir que, quando protegemos um local, estamos a proteger todas as interacções importantes que envolvem as espécies dessa área protegida”, afirma Jorge Palmeirim, defendendo que é necessário conservar várias áreas. Até porque nunca se sabe quando é que vai chegar uma formiga e desestabilizar tudo o resto.
De qualquer forma, em Ol Pejeta Conservancy, a investigação não parou. “Esperamos continuar a estudar para compreender como a redução da cobertura vegetal vai afectar o ecossistema. O balanço entre a quantidade de árvores e de gramíneas na savana é determinante para a biodiversidade do sistema, para quão frequentes os incêndios poderão ocorrer, onde e que quantidade de água é que o solo armazena, e como é que os nutrientes estão a distribuídos”, revela Todd Palmer. E resume o significado de haver ainda tantas perguntas por responder: a invasão das formigas “terá provavelmente muitos impactos que só agora começámos a desvendar”.