Demasiado calor para a festa? Temperaturas extremas são uma ameaça para os festivais de música

Os fenómenos meteorológicos agravados pelas alterações climáticas têm afectado espectáculos, sobretudo ao ar livre. Em 2023, muitos fãs tiveram problemas por causa do calor.

Foto
Os festivais de calor devem ter lugares abrigados do sol e devem avisar os espectadores de possíveis eventos meteorológicos extremos Paulo Pimenta
Ouça este artigo
00:00
07:45

De granizo do tamanho de bolas de golfe a calor mortal, quem foi a festivais de música em 2023 foi forçado a lidar com eventos climáticos extremos que os deixou em perigo durante aquele que foi o ano mais quente de que há registos no mundo. E os especialistas apontam que 2024 poderá ter temperaturas ainda mais altas.

Os especialistas em segurança de multidões e os organizadores de eventos ao ar livre estão a explorar formas de proteger os artistas e os adeptos da crescente ameaça associada às condições meteorológicas extremas, depois de o aquecimento global se ter aproximado do limite de 1,5 graus Celsius (consagrados no Acordo de Paris) no ano passado.

“Não houve um único mês durante 2023 em que não tivéssemos vários incidentes deste género”, disse Milad Haghani, professor especializado em Segurança Pública e Catástrofes na Universidade de Nova Gales do Sul (UNSW), na Austrália. “Foi sem dúvida um ano mau para a indústria musical”, afirmou.

Uma lista não-exaustiva elaborada por Haghani mostra que pelo menos 29 concertos e festivais de música em todo o mundo foram afectados por um evento climático em 2023 – dois deles resultando em mortes de espectadores. Entre elas, Ana Clara Benevides, de 23 anos, que morreu de exaustão pelo calor em Novembro, num concerto de Taylor Swift no Rio de Janeiro, Brasil, onde as temperaturas atingiram um recorde de 59 graus Celsius.

Um comunicado do Ministério da Cultura do Brasil, após a morte da jovem, referiu que todo o planeta “está a sentir os impactos das alterações climáticas”. “Factores como este devem ser cada vez mais considerados na exposição da nossa população”, disse o ministério.

Entre outros espectáculos afectados pelo clima no ano passado, 17 fãs foram hospitalizados durante um concerto de Ed Sheeran em Pittsburgh devido a incidentes relacionados com o calor, enquanto um espectáculo de Elton John na Nova Zelândia foi cancelado devido a chuvas torrenciais.

Motivo de preocupação

As condições meteorológicas extremas provocadas pelas alterações climáticas são um problema crescente para todas as actividades públicas realizadas ao ar livre, desde comícios políticos a competições desportivas.

Foto
Os festivais e eventos ao ar livre devem ter locais que protejam tanto do calor como da chuva forte e de outros eventos meteorológicos extremos Paulo Pimenta/ARQUIVO

Em Agosto passado, 600 participantes num encontro mundial de escuteiros na Coreia do Sul (onde também participaram portugueses) sentiram-se mal por causa de uma vaga de calor superior a 38 graus Celsius, o que levou à mobilização de dezenas de médicos e enfermeiros militares para os ajudar. Oito dias depois do mesmo encontro, cerca de 40.000 escuteiros adolescentes foram retirados do lugar onde estavam por causa de um tufão.

Um porta-voz da Organização Mundial do Movimento Escutista afirmou que as condições meteorológicas sempre foram um factor de risco na organização de tais eventos. Mas agora é “a natureza extrema e imprevisível dos efeitos ambientais provocados pelas alterações climáticas que é motivo de preocupação”, disse o porta-voz por email.

O organismo está a investigar como pode reforçar as suas medidas de saúde e segurança para futuros eventos e preparar-se melhor para os potenciais impactos das alterações climáticas e das condições meteorológicas extremas.

Preparação e planos de emergência

Testemunhos partilhados nas redes sociais por participantes no concerto de Taylor Swift no Brasil, onde Ana Clara Benevides morreu, descrevem como as garrafas de água foram confiscadas à entrada, enquanto a água era vendida no interior a preços elevados – uma prática comum em eventos musicais comerciais em todo o mundo.

Serafim Abreu, director executivo da empresa de entretenimento T4F, que organizou o concerto de Taylor Swift, reconheceu num vídeo publicado nas redes sociais que a empresa poderia ter mudado o horário de início do espectáculo e acrescentado mais áreas com sombra. “Sabemos que, com as alterações climáticas que estamos a viver, estes episódios vão ser mais frequentes. Sabemos também que todos os sectores devem repensar suas acções diante dessa nova realidade”, disse Abreu.

Kevin Kloesel, meteorologista que estuda a segurança de eventos na Universidade de Oklahoma, nos EUA, pede aos organizadores que façam do clima uma prioridade e lhe dêem o mesmo peso que outros factores de risco, como ataques terroristas ou tiroteios. “O clima vai ser a ameaça mais provável diariamente do que qualquer um desses outros riscos”, disse à Thomson Reuters Foundation.

Os organizadores também devem contratar meteorologistas profissionais que possam monitorizar estas ameaças e ajudar a tomar decisões difíceis – como cancelar um espectáculo para evitar ferimentos e mortes, disse. “Precisamos de um meteorologista que possa aconselhar os trabalhadores do evento sobre as estações de arrefecimento, a quantidade de água a disponibilizar e onde ficam os locais em que é mais provável que fiquem excessivamente quentes”, acrescentou Kloesel.

Os especialistas em segurança de multidões afirmam que são necessários planos de contingência rigorosos para o caso de um evento ter de ser adiado, cancelado, interrompido ou evacuado devido às condições do estado do tempo. Para Kloesel, isso inclui a adaptação dos recintos para que tenham áreas com sombra adequadas, estações de arrefecimento e locais onde o público se possa abrigar em caso de emergência.

Em Agosto, um concerto de Beyoncé em Washington D.C., nos EUA, foi adiado por duas horas porque os espectadores se refugiaram de uma tempestade com trovoada numa área de entrada sobrelotada.

“Fizeram um trabalho fenomenal de abrigo para os relâmpagos, mas amontoaram as pessoas de forma tão apertada em espaços onde não havia movimento de ar que as pessoas começaram a cair para o lado devido ao calor”, disse Kloesel.

A falta de abrigos seguros em caso de condições meteorológicas extremas afectou vários concertos no ano passado, incluindo um concerto de Louis Tomlinson em Junho, no estado norte-americano do Colorado, onde uma tempestade de granizo feriu 80 a 90 pessoas e obrigou ao cancelamento do concerto, de acordo com os bombeiros locais.

Ameaça existencial

Os participantes em actividades ao ar livre também se podem proteger de ferimentos e morte se tiverem conhecimento dos potenciais riscos meteorológicos, afirmou Haghani da UNSW. Coisas simples como verificar a previsão do tempo podem ajudar as pessoas a decidir se devem levar protector solar e água, o que vestir – e mesmo se vale a pena participar num evento.

“A avaliação dos riscos (...) é principalmente da responsabilidade dos operadores dos eventos, mas as próprias pessoas são partes interessadas e têm, de facto, um interesse maior, que é a sua vida”, disse Haghani, acrescentando que devem abandonar o local se houver perigo.

Os recintos devem manter uma comunicação transparente e atempada com o público, enviando mensagens que incluam previsões meteorológicas e mantendo-os informados durante o evento, afirmou.

Lynn Thomas, directora médica da St John Ambulance, uma instituição de caridade que presta primeiros socorros em eventos públicos no Reino Unido, disse que os festivaleiros precisam de ser alertados para o facto de que passar longos períodos ao sol pode levar à exaustão pelo calor, especialmente em países onde as pessoas não estão habituadas ao clima quente e húmido.

Os artistas também podem ajudar a evitar tragédias, disse Haghani. “Podem dar-se ao luxo de contratar analistas para lhes darem informações sobre o comportamento das multidões e também para os educarem sobre como monitorizar o comportamento das multidões, como identificar ameaças e como intervir”, afirmou.

Outros eventos ao ar livre, como as competições desportivas, estão a mudar de estação ou a desenvolver sistemas de alerta para o calor extremo. A New York Road Runners, por exemplo, implementou um sistema de alarme com código de cores para as condições do percurso no dia, permitindo que os participantes cancelem a prova se esta for considerada demasiado perigosa.

De acordo com a Presidente da Câmara de Melbourne, Sally Capp, a cidade australiana está a utilizar tinta reflectora para baixar as temperaturas em instalações como os campos de ténis. Tem também um sistema de alerta para o calor que inclui anúncios públicos na rua, bem como através das redes sociais e de mensagens de texto.

Mas mesmo com fortes planos de contingência e medidas de mitigação, o cancelamento de eventos ao ar livre pode tornar-se mais frequente devido às alterações climáticas, alertaram os investigadores.

“A viabilidade da indústria dos eventos depende da sua capacidade de fazer planos e de os cumprir”, afirmou Haghani. “Se o clima intervier constantemente, vai ameaçar a própria existência da indústria de eventos.”