Afinal, o que se quer mudar nas leis para as novas técnicas genómicas?

A regulação das novas técnicas genómicas (NTG) está no centro do debate da comissão de Ambiente do Parlamento Europeu.

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Plantações de soja transgénica no Brasil NELSON GARRIDO/ARQUIVO
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Está ultrapassado o primeiro obstáculo de um dos dossiês mais difíceis que a comissão de Ambiente do Parlamento Europeu tem em mãos: a comissão ENVI adoptou na quarta-feira a sua posição sobre a proposta da Comissão Europeia relativa às novas técnicas genómicas (NTG), com 47 votos a favor, 31 contra e quatro abstenções.

Mais de 20 anos depois da legislação sobre organismos geneticamente modificados (OGM), a Comissão Europeia voltou a pôr o tema em cima da mesa apresentando a sua proposta sobre alimentos geneticamente “editados” em Julho do ano passado, procurando um enquadramento menos apertado para a edição genética de plantas e animais através de técnicas modernas como a CRISPR/Cas9.

Depois de vários meses de análise, os eurodeputados da comissão ENVI (Comissão do Ambiente, da Saúde Pública e da Segurança Alimentar) concordam que se criem duas categorias diferentes para as plantas geneticamente modificadas produzidas com recurso às novas técnicas genómicas, cada uma com o seu conjunto de regras.

No relatório, que deverá ser votado durante a sessão plenária de 5 a 8 de Fevereiro, o Parlamento Europeu propõe ainda acabar com todas as patentes de plantas NTG, de forma a “evitar incertezas legais, custos acrescidos e novas dependências para agricultores criadores”.

Depois de aprovada no plenário do Parlamento Europeu – onde se espera mais uma onda de emendas à proposta –, seguem-se as negociações com o Conselho da UE, onde estão representados os Estados-membros (que ainda não acordaram a sua posição conjunta).

Mas, afinal, o que é que se está a propor? Esta regulação responde, de forma segura, aos apelos dos cientistas para que finalmente se regulem estas NGT de forma separada dos OGM? Reunimos respostas a algumas das perguntas sobre a tentativa de regulamentação das novas técnicas genómicas.

Qual é a diferença entre plantas NTG e os alimentos transgénicos tradicionais?

“A edição genética é diferente da transformação genética por ser mais precisa, por demorar menos tempo e por permitir alterações muito subtis no ADN”, explica Jorge Canhoto, presidente do Centro de Informação de Biotecnologia (CIB). Em entrevista ao podcast Azul, o investigador descreve que essas alterações “não precisam que sejam introduzidos genes de outros organismos”, o que as torna “muito parecidas com aquilo que ocorre naturalmente, com as mutações que ocorrem naturalmente, ou até com um melhoramento mais convencional, que é baseado em cruzamentos e em que se transferem genes através de cruzamentos”.

NTG1? NTG2?

A Comissão Europeia propôs – e a comissão ENVI subscreve – a criação de duas categorias: uma para as plantas NTG consideradas equivalentes às culturas tradicionais (plantas NTG1), que ficarão isentas dos requisitos da legislação relativa aos organismos geneticamente modificados (OGM), enquanto as plantas NTG2 – que “implicam alterações mais acentuadas do genoma das plantas”, descreve Jorge Canhoto – terão de obedecer ao quadro actual para os OGM, cuja legislação será adaptada.

O que distingue estas categorias é a dimensão e o número de modificações necessárias para que uma planta NTG seja considerada equivalente às plantas convencionais. “No caso daquilo que se chamou as NTG1, são alterações muito pequenas, que pouco se distinguem das alterações naturais”, descreve Jorge Canhoto. Para o investigador, “não faz muito sentido que essas plantas, a serem obtidas dessa maneira, tenham de passar por um processo legislativo muito complexo, como existe agora com os organismos geneticamente modificados”.

De que tipo de modificações estamos a falar?

Uma das grandes bandeiras de quem espera por esta regulamentação é a segurança alimentar: “Ao fim e ao cabo, plantas que ajudem a aumentar a produtividade e permitam fazer face a um planeta que tem uma população que não pára de aumentar”, diz Jorge Canhoto. “Temos as alterações climáticas que trazem novas pragas e novas doenças e novos desafios, e esta tecnologia pode ajudar muito nesses aspectos.”

A aplicação das novas técnicas genómicas pode “editar” as plantas de diversas formas, como torná-las “mais resistentes à seca, mais eficazes do ponto de vista fotossintético, da absorção de elementos minerais”, descreve o investigador. Esta tecnologia também pode permitir, por exemplo, eliminar compostos alergénicos de alimentos como os amendoins. “Mas é só um exemplo no grande leque de possibilidades que se abre com esta tecnologia.”

Como é que saberei se estou a comer alimentos NTG?

Esta é uma das questões que está a causar divisão no Parlamento Europeu, já que proposta aprovada pela comissão de Ambiente não exige a rotulagem obrigatória ao nível do consumidor para as plantas NTG1. Será exigido, no entanto, a criação de uma lista pública online de todas as plantas NTG1. Para as plantas NTG2, os eurodeputados concordam em manter os requisitos da legislação sobre OGM, incluindo a rotulagem obrigatória dos produtos.

Os eurodeputados querem que, sete anos após a sua entrada em vigor da legislação, a Comissão apresente um relatório sobre “a evolução da percepção dos consumidores e dos produtores relativamente às novas técnicas”.

Quem garante que estes alimentos são seguros?

Existem entidades reguladoras responsáveis por controlar o que é produzido em termos alimentares – a Autoridade Europeia para a Segurança Alimentar (​EFSA), a nível da União Europeia, e a Direcção-Geral de Alimentação e Veterinária, em Portugal – e que também deverão preparar-se para avaliar e aprovar estes produtos.

Entre os eurodeputados, a proposta dá uma no cravo e outra na ferradura: por um lado, defende-se um procedimento acelerado de avaliação de riscos, mas sublinha-se também que o chamado princípio da precaução deve ser respeitado. Entre as associações ambientalistas, os receios residem precisamente nessa avaliação de riscos demasiado acelerada, que poderá abrir margem para decisões precipitadas.

Para Jorge Canhoto, partindo do princípio que a legislação assegura a verificação de riscos ambientais e de saúde para que as entidades autorizem os alimentos a ser comercializados, o “princípio da precaução” deve ser aplicado na mesma medida (e não mais) do que acontece com “outras técnicas que têm um resultado semelhante”. “Se eu fizer cruzamentos entre plantas também estou a fazer alterações no ADN, aí ninguém fala do princípio da precaução.”

E para os agricultores, como vai ser?

Essa é outra questão que tem levantado preocupações. A Greenpeace já veio alertar que, se for adoptada, a nova lei poderá ameaçar os direitos dos agricultores e dos consumidores, uma vez que não concede protecção suficiente contra a contaminação das culturas com estes novos OGM. “Décadas de progresso na UE em matéria de direitos dos agricultores e de protecção da saúde das pessoas e do ambiente não devem ser anuladas em nome dos lucros da indústria biotecnológica”, avisa Eva Corral, activista da Greenpeace, citada num comunicado da entidade.

Como será com as patentes?

A questão das patentes é mais um capítulo delicado, tendo em conta a resistência criada nas últimas décadas depois da denúncia de casos relacionados em particular com sementes de OGM patenteadas. Para prevenir um momento “Monsanto 2.0”, entre as emendas aprovadas esta semana, os eurodeputados da comissão de Ambiente pedem que seja feito, até Junho de 2025, um relatório sobre “o impacto das patentes no acesso dos criadores e agricultores a material reprodutivo vegetal variado”, bem como uma proposta legislativa para actualizar as regras da UE em matéria de direitos de propriedade intelectual em conformidade.

Em 2021, o Corporate Europe Observatory (CEO) divulgou uma série de documentos denunciando o que descrevia como uma “batalha” lançada pela indústria da biotecnologia para que a edição genética de plantas e animais (pela técnica conhecida como CRISPR/Cas9) seja excluída das restrições aplicadas aos organismos geneticamente modificados (OGM).