Há cada vez menos água subterrânea num mundo quente e com mais gente

Um trabalho global mostra que 70% dos aquíferos está em declínio, uma tendência preocupante num mundo mais quente e com mais gente. Mas há casos de sucesso que podem inspirar políticas sustentáveis.

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Ajuntamento de pessoas para retirar água de um enorme poço em Natwarghad, no estado de Gujarat, no Oeste da Índia Amit Dave/Reuters
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A disponibilidade das águas subterrâneas é uma questão importantíssima na gestão dos recursos hídricos. Um novo trabalho dá uma visão global, com um pormenor sem precedentes, sobre o estado dos aquíferos da Terra. Em muitos casos os resultados não são animadores, já que há uma diminuição generalizada na disponibilidade deste recurso. Dos 1693 aquíferos estudados, 71% têm algum grau de declínio. Mas há também casos em que houve uma reversão desta tendência e que podem servir de exemplo para uma melhor gestão deste recurso, de acordo com o artigo publicado esta quarta-feira na revista Nature.

“Este estudo dá as tendências da quantidade de água subterrânea observada a uma escala global a partir de medições directas dos níveis daquela água”, explicam ao PÚBLICO, numa resposta por email conjunta, os investigadores Scott Jasechko, da Universidade de Santa Bárbara, na Califórnia, Estados Unidos, e Mohammad Shamsudduha e Richard Taylor, ambos da Universidade College London, no Reino Unido.

Os três investigadores, mais outros cinco que assinam o novo artigo, fizeram um trabalho “impressionante” para obter aqueles dados, de acordo com Donald John MacAllister, investigador do Serviço Geológico Britânico, que escreveu uma análise também publicada na Nature sobre a investigação. A equipa passou dois anos a compilar milhões de medições de níveis de água de 1,5 milhões de poços de vários países. A partir daquela avaliação e especificamente para este artigo, a equipa contabilizou as medições feitas em 170.000 poços de monitorização, que permitiram estudar a evolução do nível das águas subterrâneas de 1693 sistemas aquíferos em cerca de 40 países em todo o mundo.

Para se retirarem conclusões mais sólidas, o estudo excluiu os dados vindos de poços que estavam a monitorizar há menos de oito anos. Regiões como os Estados Unidos, a Europa Ocidental, o território iraniano, o Norte da Índia, o Sudeste da China, o Norte do México, o Chile, a África do Sul e o Leste da Austrália ficaram bem monitorizadas nesta avaliação. Mas grande parte da África, da América do Sul, da China e da Rússia não ficaram bem representadas, por falta de acesso aos dados ou por falta de monitorização. Ainda assim, a análise contempla “aproximadamente 75% das captações de água a nível global”, lê-se no resumo do artigo.

Menos chuva e mais procura

Os resultados são preocupantes, principalmente quando se tem em conta que perto de 70% da água dos aquíferos é usada para a irrigação agrícola e que a diminuição da pluviosidade associada às alterações climáticas – que está a ocorrer em muitos territórios, incluindo no Sul de Portugal – torna este recurso ainda mais vital. “O declínio rápido da água subterrânea é generalizado, especialmente nos climas áridos com terras agrícolas extensivas”, explicam os três autores. “A água subterrânea é um recurso vital a nível global, providenciando água para beber a milhares de milhões de indivíduos e fornecendo perto de metade de toda a água usada para a irrigação.”

No passo seguinte, a equipa olhou para 542 dos 1693 aquíferos, onde havia informação desde 1980. Desta forma, foi possível avaliar a evolução dos aquíferos ao longo de mais tempo. Os investigadores concluíram que em 30% daqueles aquíferos a diminuição do nível de água se acelerou nas duas primeiras décadas do século XXI em relação às duas últimas décadas do século XX. Daquela percentagem, 90% dos aquíferos situam-se em zonas secas do globo, onde a pluviosidade tem vindo a diminuir.

“É pior do que prevíamos e realça a necessidade urgente de identificar e aplicar soluções para encarar o esgotamento da água subterrânea”, afirmam os três autores, olhando para o que aquele cenário pode trazer. “A rápida e a acelerada redução dos níveis de água subterrânea pode levar a consequências indesejáveis: como a intrusão de água salgada, que pode contaminar os aquíferos costeiros; o abatimento de terra, que pode danificar as infra-estruturas e inundar as comunidades costeiras; o esgotamento dos cursos de água à superfície, o que pode reduzir a disponibilidade de água para usos feitos a jusante, incluindo para a vida selvagem; e os poços podem ficar secos, prejudicando o acesso à água limpa e acessível”, enumeram.

As principais razões para o declínio dos aquíferos é a diminuição do reabastecimento das águas, vindas da chuva, e a captação contínua das águas associada à agricultura. Uma das análises feita pela equipa revela que os aquíferos que estão a sofrer um maior declínio situam-se nas regiões que são simultaneamente secas e têm grandes extensões de áreas cultivadas.

“Estas conclusões constituem um aviso oportuno, numa altura em que o mundo se prepara para um aumento de temperatura de 1,5 graus Celsius ou mais e com as mudanças nos padrões de seca e precipitação que se seguirão”, adianta Donald John MacAllister, que na sua análise refere que será importante obter mais dados sobre a evolução dos aquíferos nas regiões não contempladas pelo actual estudo, como África, onde há um rápido crescimento da população e a dependência da água subterrânea “irá provavelmente aumentar”.

Exemplos positivos

Mas há uma população de aquíferos em que o cenário é mais positivo. Em 49% dos 542 aquíferos, a velocidade de declínio do nível de água desacelerou-se (20%), reverteu-se (16%) ou tem vindo a aumentar a disponibilidade de água (13%).

O artigo dá exemplos específicos para cada um dos casos. Na Arábia Saudita, houve uma “desaceleração marcada” do declínio do nível do aquífero de Saq do Leste, “possivelmente em parte devido a políticas feitas para reduzir as necessidades de água na agricultura”, lê-se no documento. Na bacia de Banguecoque, na Tailândia, medidas de regulamento que obrigaram a fazer o licenciamento dos poços e que permitiram taxar a água captada reverteram o declínio do aquífero. Outro exemplo vem do Arizona, nos Estados Unidos, em que se foi buscar água ao rio Colorado para alimentar um aquífero situado por baixo do vale Avra, no Sul daquele estado.

Este tipo de casos pode ser um exemplo para a gestão dos aquíferos em outras partes do mundo. “As formas sustentáveis de usar a água subterrânea têm em conta não só a sua renovação mas também a equidade do seu uso”, escrevem os três autores. “Alguns exemplos realçam a importância das soluções orientadas pela procura (a alteração dos tipos de cultura agrícola, a introdução de taxas) e as intervenções do lado da oferta (uma captura mais eficaz da água da superfície e da água da chuva) para repor a água subterrânea.”

Estas reversões levam tempo. “Em geral, as taxas de aumento do nível da água subterrânea são muito mais lentas do que as do declínio”, sublinha-se no artigo. “Para resolver o crescente problema do esgotamento global das águas subterrâneas, este tipo de histórias de sucesso teria de ser replicado em dezenas de sistemas aquíferos.”