Em ano de El Niño, o fenómeno climático que de forma cíclica traz condições de seca à região da Amazónia, foram as alterações climáticas com origem na acção humana que tiveram mais influência na seca sem precedentes que assola a região.
Um estudo de atribuição do grupo World Weather Attribution publicado esta quarta-feira, realizado por mais de uma dezena de investigadores, mostra que as alterações climáticas são a principal causa da diminuição da precipitação e o aumento das temperaturas na Amazónia no período entre Junho e Novembro de 2023, tornando a devastadora seca agrícola de 2023 cerca de 30 vezes mais provável.
O panorama já é conhecido, mas esta é a primeira análise de atribuição, ou seja, que descreve quais os factores que têm contribuído para a seca excepcional que ocorre actualmente na bacia do rio Amazonas, onde o nível das águas está nos níveis mais baixos dos últimos 120 anos. A seca agrícola na bacia do Amazonas, classificada como uma “seca excepcional”, poderia ter sido “apenas” uma “seca severa” sem os efeitos das alterações climáticas.
Separar o joio
A destrinça entre o factor El Niño e o factor alterações climáticas não é simples, já que “ambos os tipos de seca [que agravam] são prováveis”, explica o investigador Ben Clarke, especialista em análise e interpretação de dados climáticos para condições meteorológicas extremas do Instituto Grantham (Imperial College London), numa conferência de imprensa.
Os investigadores partiram então para uma análise que combinou registos históricos, que permitem compreender quão frequentes são estes eventos, com modelos climáticos usados em vários estudos revistos por pares, combinando as análises da seca meteorológica de seis meses (SPI6) e da seca agrícola (SPEI6).
Friederike Otto, investigadora que fundou o World Weather Attribution, relata que ocorrem dois tipos de seca na região. A primeira é a chamada “seca meteorológica”, devido à falta de chuva, em que há “um papel repartido entre o El Niño e as alterações climáticas”.
Mas a região sofre também da chamada “seca agrícola”, relacionada com a perda de água no solo resultante da evaporação (exacerbada pelo tempo quente). Esta seca agrícola teria sido extremamente rara num clima mais frio, concluíram os investigadores. “Nesta combinação de pouca chuva e evaporação, o El Niño está a ter um papel pequeno, e as alterações climáticas estão a ter uma influência grande”, resume a investigadora.
O resultado: fenómenos de seca desta dimensão são dez vezes mais prováveis devido à falta de chuva (seca meteorológica) e 30 vezes mais prováveis pelas temperaturas (seca agrícola). E a seca agrícola na bacia do Amazonas, classificada como uma “seca excepcional” (nível 4, de acordo com o sistema de monitorização de secas dos EUA), poderia ter sido apenas uma “seca severa” (nível 2) sem os efeitos das alterações climáticas.
Seguindo as “pegadas” das alterações climáticas
Mas o que torna esta seca na Amazónia inédita? “Tivemos secas devido a fenómenos naturais como o El Niño, mas aconteciam em partes específicas, em alturas diferentes. O que é inédito é que aconteceu ao mesmo tempo em toda a bacia amazónica. Os níveis do rio estão tão baixos que todas as populações são afectadas”, descreve Regina Rodrigues, investigadora da Universidade Federal de Santa Catarina na área da Oceanografia Física.
A coordenadora da Subrede Desastres Naturais da Rede Clima vai descrevendo as várias “pegadas” das alterações climáticas que influenciaram este caldo que deu origem à seca anormal na Amazónia, como “o Atlântico Norte em 2023 anormalmente quente”. O período de seca está a tornar-se mais longo, diz ainda Regina Rodrigues, chamando a atenção para outra “assinatura” das alterações climáticas.
E, olhando para o futuro, os investigadores aplicaram as metodologias de ponta para projectar os próximos anos e os resultados não são animadores: a combinação de pouca chuva com as altas temperaturas vai tornar-se mais frequente — e, consequentemente, as situações de seca também.
A “receita” para combater o aquecimento do planeta, diz a ciência, passa em primeiro lugar por acabar com a queima de combustíveis fósseis, principais emissores de gases com efeito de estufa, e combater a desflorestação. Caso contrário, estes fenómenos tornar-se-ão ainda mais comuns no futuro: num mundo 2°C mais quente do que na era pré-industrial, um evento como este “tornar-se-ia ainda mais provável por um factor adicional de 4 para a seca agrícola (a cada 10-15 anos) e um factor adicional de 3 para a seca meteorológica (a cada 30 anos, aproximadamente)”, descrevem os investigadores.
Impacto social
A seca afecta não apenas os ecossistemas, mas os milhões de habitantes da bacia amazónica, que dependem destes rios para transporte e que daí retiram a sua alimentação e rendimentos. É por isso que, explica Friederike Otto, o estudo também olha para “o papel da vulnerabilidade” na forma como estes fenómenos extremos têm impactos diferentes sobre diferentes populações.
O estudo identificou algumas populações mais vulneráveis que foram, efectivamente, afectadas de forma desproporcional pela seca, como pequenos agricultores ou as comunidades indígenas, rurais e ribeirinhas, que concentram elevadas taxas de pobreza e uma grande dependência da produção agrícola de alimentos da disponibilidade de água doce e do transporte de bens através dos rios.
“Estas populações são mais vulneráveis e continuarão a ser as mais vulneráveis”, sublinha Simphiwe Stewart, investigadora do Centro Climático da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho. Em conferência de imprensa, a cientista sul-africana recordou que a dimensão desta seca pode ser única, mas não se trata de um caso isolado, e por isso é imperativo “olhar para o potencial transformador” de prever estes fenómenos e prevenir o seu impacto sobre as comunidades vulneráveis.
Mudar práticas históricas
“A bacia amazónica é muito diversa e dinâmica [em termos ambientais e políticos]”, afirmou a investigadora, em conferência de imprensa, englobando mesmo a ideia de “microclimas” em dimensões além das ambientais. Países como Brasil, Colômbia ou Peru já estão a trabalhar em “reformas promissoras” que poderão trazer uma oportunidade para transformação.
Há ainda “práticas históricas de gestão da terra, da água e da energia” que contribuem para a vulnerabilidade das pessoas e dos ecossistemas ao impacto da seca, como a desflorestação, a destruição da vegetação, os incêndios, a queima de biomassa, a agricultura industrial, a criação de gado e outros “problemas socioclimáticos que diminuíram a capacidade de retenção de água e humidade da terra, agravando assim as condições de seca”, referem os investigadores.
Para trazer soluções para um futuro climático mais incerto, Simphiwe Stewart insiste numa visão holística: “Não é olhar para uma actividade ou outra, mas um ecossistema.” A investigadora faz notar que é preciso mudar o “enquadramento institucional sistémico” que ainda favorece a desflorestação, mantendo medidas e subsídios que incentivam determinados usos do solo.
A falta de capacidade de responder às secas recentes mostra também que é preciso reformar as políticas para tornar mais eficazes os sistemas de previsão e alertas precoces, repensar os planos de contingência para a seca, apostar em práticas sustentáveis de gestão da água e reforçar o investimento em infra-estruturas para fazer face a secas futuras e mais intensas.
No terreno, estas medidas devem traduzir-se em “estratégias mais eficazes de gestão da água, uma resposta humanitária interdisciplinar e uma cooperação regional que inclua os agricultores e outras partes interessadas no planeamento”, resumem os investigadores.