Como morre um capitão (I)

Há meio século, o 25 de Abril pôs fim à Guerra Colonial. Os veteranos reencontram-se anualmente. Tentam perceber se valeu a pena. Ouço-lhes as histórias, a mágoa. Valeu a pena, a liberdade.

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A caminho de Cuamba (rio Malema) Paulo Faria
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Desejamos que as nossas vidas tenham valido a pena, com as suas coisas más e as suas coisas boas. As coisas más, principalmente, é imperioso que tenham valido a pena. E também as coisas que nos souberam bem, os gestos de todos os dias que, percebemo-lo agora, fizeram tanto mal aos outros. Desejamos que o império, de que os nossos pais foram actores e de que nós somos herdeiros, tenha valido a pena. Desejamos que os mortos tenham valido a pena. Desejamos que os mortos se tenham sacrificado para nos tornar mais sábios.

“Vi morrer vários homens na guerra. O capitão foi o último. Durante muito tempo, tive pesadelos com isso. Agora, já não. Éramos uma companhia de caçadores, fazíamos parte de um batalhão de recrutamento local, tudo homens nascidos em Moçambique.”

Nunca vi um homem com as unhas tão roídas. Praticamente, não tem unhas. As pontas dos dedos das mãos são em forma de bola, cada unha está reduzida a uma lasca. E ele rói, rói sem parar. Mete um dedo na boca, consegue encontrar uma ponta onde fincar os dentes e arranca mais uma lasca. Ouve-se um estalo surdo, depois ele cuspinha. Chama-se Aurélio Lobo, foi furriel na Guerra Colonial.

“A minha mãe era natural de Goa; eu também nasci lá, mas os pais da minha mãe eram daqui, da metrópole. O meu avô materno foi para a Índia logo a seguir à Primeira Guerra Mundial, era militar de carreira, tenente do quadro. Nasci em 49, os meus pais vieram da Índia em 51. O meu pai foi para a Índia como tropa, conheceu lá a minha mãe. A ideia do meu pai, segundo ele me contou, quando saiu da Índia, era vir para cá, para o Porto, de onde ele era natural. O meu pai ou era soldado ou era cabo, não tenho bem a certeza, ia passar à disponibilidade aqui na metrópole. Só que na viagem, no navio, começaram a angariar pessoas para ficarem nas colónias, em Moçambique, em Angola, oferecendo-lhes empregos. Quem era tropa podia entrar para a polícia, por exemplo. Ele vinha para Portugal às cegas, sem perspectiva de trabalho, com mulher e um filho bebé para sustentar. Decidiu ficar em Moçambique e entrou para a PSP. Só tinha a quarta classe, mas era um tipo que lia muito, gostava muito de ler, era muito interessado, gostava imenso de Geografia, de se informar sobre o mundo. Escrevia muito. Não me pergunte o que é que ele escrevia; não sei se era na base do que lia, mas escrevia muito e tinha muito jeito. Não guardei nada desses papéis. Viemos de lá da maneira que se sabe, nem as cartas que escrevi à minha mulher durante aqueles dois anos em que estive no Niassa consegui trazer. Não trouxemos uma sequer.”

Participo no almoço anual desta companhia, porque, nas minhas pesquisas, descobri que esta unidade esteve nos aquartelamentos do Chicôco e de Necoleze, no Niassa, em 1971 e 1972, os mesmos lugares onde, em 1967 e 1968, tinha estado a companhia do meu pai. Trago fotografias dos quartéis; trago retratos do Artur, o menino negro de quem o furriel Gamito, camarada do meu pai, cuidou como se fosse seu filho, e que depois deixou lá. Algum destes homens se lembrará de ter visto o garoto no Chicôco, já mais crescido? Fui a Moçambique por duas vezes, visitei estas aldeias, voltei sem notícias. Não pude dizer ao furriel Gamito que o Artur, um menino enredado nas malhas do império, é hoje um homem feliz. Nem rasto encontrei dele. Mas se nesta tarde puder telefonar ao Gamito a contar-lhe que alguém viu o Artur no Chicôco em 1972, quatro anos depois de ele o ter visto pela última vez, e que esse alguém matou a fome ao miúdo e o vestiu, então qualquer coisa nesta nossa história imperial se tornará mais suave, por pouco que seja. Procuro o rasto do Artur como quem procura uma redenção.

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Furriel Gamito e Vítor, em Moçambique, em 1967

“Os soldados da companhia eram negros, na maioria, mas também havia brancos. Daí para cima havia indianos, brancos, mulatos, mas também havia negros, muitos, até. Tenho fotografias no meu álbum em que estamos sete ou oito furriéis e, se calhar, é ela por ela, entre brancos e pretos. O capitão era branco. Os capitães, aliás, porque conheci dois lá na companhia. O capitão Henriques está ali, já lho apresento. Depois conto-lhe como morreu o primeiro capitão.”

Mundos diferentes

Vem sempre à baila nestas conversas, obsessivamente, a questão de saber se moçambicanos e angolanos estão melhor agora do que antes. Para estes homens, é essa a medida para aquilatar se tudo valeu a pena. Usam os termos “negro” e “preto” indistintamente, como se viajassem entre dois mundos, entre dois tempos.

“Sinceramente, não sei se eles estão melhor agora com a independência do que estavam antes. Claro que, no meu tempo, os negros não viviam bem. A vida dos brancos e a vida dos pretos era separada, não era a mesma coisa, nem por sombras. Eram mundos diferentes.”

Jorge Fagundes intervém. É mulato, também antigo furriel. Um homem sereno, de quem emana uma tranquilidade repousante.

“Saí de Moçambique em 1977, só lá voltei em 2006. Agora, vou lá todos os anos, tenho lá família. Na Beira, que é donde eu sou, chamavam ‘muzungos’ aos brancos. Os monhés e os mulatos não eram muzungos. Enquanto lá vivi, nunca ninguém me chamou isso. Quando voltei à Beira, em 2006, as pessoas chamaram-me ‘muzungo’. Pensei assim: ‘Eh, lá! Ao fim de 30 anos, fui promovido!’ Mas é tudo por interesse, por causa da miséria que lá há. Eles agora estão arrependidos do que fizeram.”

Estes homens parecem achar que a única maneira de os camaradas não terem morrido em vão é a miséria moçambicana do presente, bem visível, em carne viva; apagar a miséria moçambicana do passado, sempre fácil de ignorar ou romantizar, esbatida pela lonjura.

Jorge continua: “Depois do 25 de Abril e da independência, ia no meu carro de casa para o trabalho e do trabalho para casa, lá na Beira, e de cinco em cinco quilómetros havia milícias na estrada, a montarem barreiras. Não eram gajos da Frelimo, eram gaiatos que formavam milícias, mas estavam armados. Uma vez, mandaram-me parar seis vezes a caminho da casa da minha sogra. Tinha de abrir a bagageira, depois tinha de abrir a tampa do motor, para verem se não levava armas escondidas. Quando cheguei ao sétimo posto de controlo, o gaiato chegou-se à janela do meu lado e eu perguntei-lhe: ‘Quer que abra à frente ou atrás?’ O tipo afinou, ficou ofendidíssimo, estava a ver que aquilo ainda ia dar sarilho. O que me valeu foi que estava lá um tipo da Frelimo. Veio ter comigo, perguntou: ‘O que é que se passa?’ Eu expliquei, e ele: ‘Vá-se lá embora, deixe estar, não ligue.’ Mas não dava para continuar lá.”

O capitão toma a palavra, chegou o momento dos discursos.

“Não tenho jeito nenhum para falar. Por isso é que tive poucas namoradas.”

Todos se riem, trocam olhares entendidos, percebo que já conhecem a piada.

“Vocês ajudaram-me muito. Nenhum general ganha a guerra sozinho.”

Enquanto ele fala, uma varejeira enorme mete-se na dobra de uma fatia de presunto pousada num pires e passeia ali dentro, e eu vejo-a à transparência. Para todos os efeitos, estes homens sentem que ganharam a sua guerra. Outros a perderam, não eles.

Aurélio conta-me a sua despedida de Moçambique. Esta, sim, foi a derrota destes homens. Terem abandonado a sua terra, terem vindo para Portugal, onde a esmagadora maioria nunca pusera os pés.

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Juanico, à esquerda, e Estefan, em Cuamba, Moçambique Paulo Faria

“A independência foi a 25 de Junho de 75, vim-me embora com a minha mulher em Dezembro desse ano. Podíamos ter lá ficado, hesitámos muito, acabámos por achar que não dava mais. A minha mulher, embora fosse moçambicana, praticamente nunca tinha saído de Lourenço Marques, só tinha estado em Inhambane, em miúda. Não conhecia nada de Moçambique. Eu, à conta de o meu pai ser agente da PSP e de ter sido colocado em muitos lugares, conhecia bem a Beira, Quelimane, Vila Cabral, a zona de Nampula. Então aliciei-a a irmos fazer uma viagem, apesar dos tempos conturbados, para ela não se vir embora sem conhecer aquilo melhor. Queria mostrar-lhe aquelas terras, sabíamos que o mais provável era não voltarmos lá. Uma semana de férias. Fui a uma agência de viagens, comprei bilhetes de avião. Dormimos uma noite na Beira, passeámos, fomos ao cinema, não tivemos problema nenhum. Depois fomos para Quelimane, dois dias, salvo erro, no Hotel Chuabo, um dos hotéis mais importantes de Moçambique, uma vista louca, uma coisa linda, foi inaugurado quando eu tinha 11 ou 12 anos e estava em Quelimane, sempre tinha querido ficar lá hospedado. Lembro-me de o hotel estar ainda em construção e de eu ter ido à socapa com amigos, miúdos como eu, até lá acima, e ficar deitado no segundo ou terceiro andar a ver uma corrida de automóveis, para não pagarmos bilhete. Não estava quase ninguém no hotel, eu e a minha mulher éramos os únicos hóspedes, mais um casal de mulatos. O restaurante estava fechado, só serviam grelhados no bar. E depois fomos para Nampula. Tínhamo-nos casado há pouco tempo, aquilo foi quase uma lua-de-mel. Não sei nadar. Ficámos num hotel que era perto do Clube Ferroviário de Nampula, que tem piscina, e íamos até lá. E a minha mulher tentou ensinar-me a nadar. Tínhamos vagar, pouco havia para fazer, e ela deu-me umas lições. Eu conhecia a ilha de Moçambique, fui lá uma vez com os meus pais, em miúdo. Disse para a minha mulher: “Estamos aqui tão perto, e se déssemos lá um salto, o que é que achas? É perto, apanha-se o comboio.” Comprámos o bilhete, eram umas quatro horas de viagem de comboio, levámos uma mala pequena, deixámos o resto da bagagem no hotel, só queríamos passar uma noite na ilha. Quando entrámos na carruagem do comboio, estava cheia, cheia que nem um ovo. Aquela e as outras todas. E montes de gente na estação, um mar de gente a perder de vista. Sentámo-nos no nosso lugar e olhámos à nossa volta, e éramos os dois únicos brancos no meio daqueles pretos todos. Ninguém nos fez mal, ninguém fez comentários, nada. Mas o nosso ânimo acabou ali. Parece que foi um sentimento mútuo. Bastou olharmos um para o outro, não precisámos de falar. Eu senti nela medo, medo a valer, medo no olhar dela. E ela deve ter sentido o mesmo em mim, porque eu também estava com medo, sou-lhe franco. E eu disse assim para ela: ‘Vamos sair, não é?’ E ela: ‘Sim, é melhor.’ Pegámos na malinha, descemos do comboio, voltámos para o hotel. Vestimos os fatos de banho, pegámos nas toalhas, fomos para a piscina do Clube Ferroviário. Nunca cheguei a aprender a nadar.”

Nenhum dos veteranos desta companhia reconhece o Artur nas fotografias do furriel Gamito. Aurélio Lobo nunca mais voltou a Moçambique com a mulher.


Janeiro de 2024

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